DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
NA ABERTURA DO CONGRESSO ECLESIAL DA DIOCESE DE ROMA
Basílica de São João de Latrão
Quinta-feira, 16 de junho de 2016
Boa tarde!
As cinco naves cheias. Bem! Vê-se que há vontade de trabalhar.
«A alegria do amor: o caminho das famílias em Roma»: é este o tema do vosso Congresso diocesano. Não vou começar falando da Exortação, dado que ela será objeto de exame em diversos grupos de trabalho. Gostaria de retomar juntamente convosco algumas ideias/tensões-chave que surgiram durante o caminho sinodal, que nos podem ajudar a compreender melhor o espírito que se reflete na Exortação. Um Documento que possa orientar as vossas reflexões e os vossos diálogos, e assim «dê coragem, estímulo e ajuda às famílias no seu compromisso e nas suas dificuldades» (AL, 4). E gostaria de fazer esta apresentação de algumas ideias/tensões-chave, com três imagens bíblicas que nos permitirão entrar em contacto com a passagem do Espírito no discernimento dos Padres sinodais. Três imagens bíblicas.
1. «Tira as sandálias dos teus pés, porque o lugar em que te encontras é uma terra santa» (Êx 3, 5). Foi este o convite que Deus fez a Moisés diante da sarça ardente. O terreno que se deve atravessar, os temas a enfrentar no Sínodo, precisavam de uma determinada atitude. Não se tratava de analisar um argumento qualquer; não estávamos diante de uma situação qualquer. Diante de nós estavam os rostos concretos de tantas famílias. E soube que, nalguns grupos de trabalho, durante o Sínodo, os Padres sinodais partilharam a própria realidade familiar. Este dar um rosto aos temas — por assim dizer — exigia, e exige, um clima de respeito capaz de nos ajudar a ouvir o que Deus nos está a dizer no âmbito das nossas situações. Não um respeito diplomático ou politicamente correto, mas um respeito cheio de preocupações e perguntas honestas que tinham por objetivo o cuidado das vidas que estamos chamados a apascentar. Como ajuda dar um rosto aos temas! E como ajuda apercebermo-nos de que por detrás dos documentos há um rosto, como ajuda! Liberta-nos de nos apressarmos para chegar a conclusões bem formuladas mas muitas vezes carentes de vida; liberta-nos de falar em abstrato, para nos podermos aproximar e dedicar a pessoas concretas. Protege-nos de ideologizar a fé mediante sistemas bem arquitetados mas que ignoram a graça. Muitas vezes tornamo-nos pelagianos! E isto pode ser feito apenas num clima de fé. É a fé que nos impele a não nos cansarmos de procurar a presença de Deus nas mudanças da história.
Cada um de nós teve uma experiência de família. Nalguns casos brota a ação da graça com mais facilidade do que noutros, mas todos vivemos esta experiência. Naquele contexto, Deus veio ao nosso encontro. A sua Palavra veio até nós não como uma sequência de teses abstratas, mas como uma companheira de viagem que nos amparou no meio da dor, nos animou na festa e nos indicou sempre a meta do caminho (cf. AL, 22). Isto recorda-nos que as nossas famílias, as famílias nas nossas paróquias com os seus rostos, com todas as suas complicações não são um problema, mas uma oportunidade que Deus põe à nossa frente. Oportunidade que nos desafia a suscitar uma criatividade missionária capaz de abraçar todas as situações concretas, no nosso caso, das famílias romanas. Não só das que vêm ou se encontram nas paróquias — isto seria fácil, mais ou menos — mas poder chegar às famílias dos nossos bairros, àquelas que não vêm. Este encontro desafia-nos a não considerar nada e ninguém, perdido, mas a procurar, a renovar a esperança de saber que Deus continua a agir no interior das nossas famílias. Desafia-nos a não abandonar ninguém porque não está à altura de quanto se lhe pede. E isto impõe que saiamos das declarações de princípio para nos imergirmos no coração palpitante dos bairros romanos e, como artesãos, começarmos a plasmar nesta realidade o sonho de Deus, o que só podem fazer as pessoas de fé, aquelas que não fecham a porta à ação do Espírito, e que sujam as mãos. Refleti sobre a vida das nossas famílias, tal como são e como se encontram, exige que tiremos os sapatos para descobrir a presença de Deus. Esta é a primeira imagem bíblica. Ir: há Deus, ali. Deus anima-nos, Deus que vive, Deus que está crucificado... mas é Deus.
2. Agora, a segunda imagem bíblica. A do fariseu, quando ao rezar dizia ao Senhor: «Graças te dou, ó Deus, que não sou como os demais homens: ladrões, injustos e adúlteros; nem como o publicano que está ali» (Lc 18, 11). Uma das tentações (cf. AL, 229) à qual estamos continuamente expostos é ter uma lógica separatista. É interessante. Para nos defendermos, pensamos que ganhamos em identidade e em segurança todas as vezes que nos diferenciamos ou nos isolamos dos outros, sobretudo daqueles que estão a viver numa situação diferente. Mas a identidade não se faz na separação: a identidade faz-se na pertença. A minha pertença ao Senhor: isto confere-me a identidade. Afastar-me dos outros para que não me «contagiem».
Considero necessário dar um passo importante: não podemos analisar, refletir e ainda menos rezar sobre a realidade como se estivéssemos em margens ou sendas diversas, como se estivéssemos fora da história. Todos precisamos de nos converter, todos temos necessidade de nos pormos diante do Senhor e de renovar todas as vezes a aliança com Ele e dizer juntamente com o publicano: Meu Deus, meu Deus, tende piedade de mim que sou um pecador! Com este ponto de partida, permanecemos incluídos na mesma «parte» — não separados, incluídos na mesma parte — e pomo-nos diante do Senhor com uma atitude de humildade e de escuta.
Justamente, olhar para as nossas famílias com a delicadeza com que Deus as vê ajuda-nos a pôr as nossas consciências na sua mesma direção. A ênfase dada à misericórdia põe-nos diante da realidade de maneira realista, e não com um realismo qualquer, mas com o realismo de Deus. As nossas análises são importantes, necessárias e nos ajudarão a ter um realismo sadio. Mas nada é comparável com o realismo evangélico, que não se detém na descrição das situações, das problemáticas — ainda menos do pecado — mas vai sempre além e consegue ver por detrás de cada rosto, história, situação, uma oportunidade, uma possibilidade. O realismo evangélico compromete-se com o próximo, com os outros e não faz dos ideais e do «ter que ser» um obstáculo para se encontrar com os outros nas situações que estão a viver. Não se trata de não propor o ideal evangélico, não, não se trata disto. Ao contrário, convida-nos a vivê-lo dentro da história, com tudo o que comporta. E isto não significa não ser claros na doutrina, mas evitar cair em juízos e atitudes que não assumem a complexidade da vida. O realismo evangélico suja as mãos porque sabe que «trigo e joio» crescem juntos, e o melhor grão — nesta vida — estará sempre misturado com um pouco de joio. «Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida que não deixe espaço a qualquer confusão», compreendo-os. «Mas penso sinceramente que Jesus deseja uma Igreja atenta ao bem que o Espírito espalha no meio da fragilidade: uma Mãe que, no mesmo momento em que expressa claramente o seu ensinamento objetivo, “não renuncia ao bem possível, mesmo correndo o risco de se sujar com a lama do caminho”». Uma Igreja capaz de «assumir a lógica da compaixão para com as pessoas frágeis e evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes. O próprio Evangelho nos pede para não julgar nem condenar (cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37)» (AL 308). E aqui abro um parênteses. Chegou às minhas mãos — certamente vós conhecei-la — a imagem daquele capitel da Basílica de Santa Maria Madalena em Vézelay, no sul da França, onde começa o caminho de Santiago: de um lado está Judas, enforcado, com a língua de fora, e do outro lado do capitel está Jesus Bom Pastor que o carrega sobre os ombros, que o leva consigo. É um mistério. Mas estes medievais, que ensinavam a catequese com as figuras, tinham compreendido o mistério de Judas. E o padre Primo Mazzolari numa Quinta-Feira Santa fez um lindo discurso, sobre este tema, um lindo discurso. Um sacerdote não desta diocese mas da Itália. Um sacerdote da Itália que compreendeu bem esta complexidade da lógica do Evangelho. E quem mais sujou as mãos foi Jesus. Jesus sujou-se mais. Não era um «limpo», mas ia ao encontro do povo, entre as pessoas e aceitava-as como eram, não como deviam ser. Voltemos à imagem bíblica: «Agradeço-te, Senhor, porque pertenço à Ação Católica, ou a esta associação, ou à Cáritas, ou a isto ou aquilo..., e não como estes que moram nos bairros e são ladrões e delinquentes e...». Isto não ajuda a pastoral!
3. Terceira imagem bíblica: «Os idosos terão sonhos proféticos» (cf. Gl 3, 1). Tal era uma das profecias de Joel para o tempo do Espírito. Os idosos terão sonhos e os jovens visões. Com esta terceira imagem gostaria de frisar a importância que os Padres sinodais deram ao valor do testemunho como lugar no qual se pode encontrar o sonho de Deus e a vida dos homens. Nesta profecia contemplamos uma realidade inderrogável: nos sonhos dos nossos idosos reside muitas vezes a possibilidade de que os nossos jovens tenham novas visões, tenham de novo um futuro — penso nos jovens de Roma, das periferias de Roma — temos um porvir, temos uma esperança. Mas se 40% dos jovens com menos de 25 anos não encontram trabalho, que esperança podem ter? Aqui em Roma. Como encontrar o caminho? São duas realidades — os idosos e os jovens — que caminham juntas e que precisam uma da outra e estão relacionadas. É bom encontrar esposos, casais, que já idosos, continuam a procurar-se, a olhar uns para os outros; continuam a amar-se e a escolher-se. É tão bom encontrar «avós» que mostram nos seus rostos enrugados pelo tempo a alegria que nasce de ter feito uma opção de amor e por amor. A Santa Marta vêm tantos casais que celebram 50, 60 anos de matrimónio, e também às audiências da quarta-feira, e eu abraço-os sempre, agradeço-lhes o testemunho e pergunto: «Qual de vós teve mais paciência?». E respondem sempre: «Ambos!». Por vezes, brincando, algum diz: «Eu!», mas depois acrescenta: «Não, estou a brincar». E uma vez houve uma resposta muito bonita, creio que todos o pensavam mas houve um casal com 60 anos de matrimónio que conseguiu expressá-lo: «Ainda estamos apaixonados!». Que lindo! Os avós que dão testemunho. E eu digo sempre: mostrai-o aos jovens, que se cansam depressa, que depois de dois ou três anos dizem: «Volto para a minha mãe». Os avós!
Como sociedade, privamos os nossos idosos da sua voz — este é um pecado social atual! — privámo-los do seu espaço; privámo-los da oportunidade de nos contar a sua vida, as suas histórias e experiências. Pusemo-los de parte e deste modo perdemos a riqueza da sua sabedoria. Descartando-os, descartamos a possibilidade de entrar em contacto com o segredo que lhes permitiu ir em frente. Privámo-nos do testemunho de cônjuges que não só perseveraram no tempo, mas que conservam no seu coração a gratidão por tudo o que viveram (cf. AL, 38).
Esta falta de modelos, de testemunhos, esta falta de avós, de pais capazes de narrar sonhos não permite que as jovens gerações «tenham visões». E ficam parados. Não permite que façam projetos, dado que o futuro gera insegurança, desconfiança, receio. Só o testemunho dos nossos pais, ver que foi possível lutar por algo que valia a pena, os ajudará a erguer o olhar. Como pretendemos que os jovens vivam o desafio da família, do matrimónio como um dom, se nos ouvem dizer continuamente que se trata de um peso? Se quisermos «visões», deixemos que os nossos avós contem, partilhem os seus sonhos, porque queremos ter profecias do porvir. E aqui gostaria de refletir um pouco. Chegou o momento de encorajar os avós a sonhar. Precisamos dos sonhos dos avós e de os ouvir. A salvação vem disto. Não é ocasional que quando o Menino Jesus é levado ao Templo é acolhido por dois «avós», que tinham contado os seus sonhos: aquele idoso [Simeão] tinha «sonhado», o Espírito tinha-lhe prometido que teria visto o Senhor. Chegou o momento — e não é uma metáfora — chegou a hora na qual os avós devem sonhar. É precioso impulsioná-los a sonhar, a dizer-nos algo. Eles sentem-se descartados, ou até desprezados. Agrada-nos dizer, nos programas pastorais: «Chegou a hora da coragem», chegou a hora dos leigos» «esta é a hora...». Mas se eu tivesse que dizer, esta é a hora dos avós! «Mas, Padre, o senhor retrocede, é pré-conciliar!». É a hora dos avós: que os avós sonhem, e os jovens aprendam a profetizar e a realizar com a sua força, com a sua imaginação, com o seu trabalho, os sonhos dos avós. Chegou a hora dos avós. E gostaria tanto que sobre isto vós meditásseis nas vossas reflexões, gostaria tanto.
Três imagens, para ler a Amoris laetitia:
1. A vida de cada pessoa, a vida de cada família, deve ser tratada com muito respeito e muita atenção. Sobretudo quando refletimos sobre estas coisas.
2. Evitemos concretizar uma pastoral de guetos e para guetos.
3. Demos espaço aos idosos para que voltem a sonhar.
Três imagens que nos recordam como «a fé não nos tira do mundo, mas insere-nos mais profundamente nele» (AL, 181). Não como aqueles perfeitos e imaculados que pensam saber tudo, mas como pessoas que conheceram o amor de Deus por nós (cf. Jo 4, 16). Com esta confiança, com esta certeza, com muita humildade e respeito, queremos aproximar-nos de todos os nossos irmãos para viver a alegria do amor na família. Com esta confiança renunciámos aos «recintos» «que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura» (AL, 308). Isto impõe que desenvolvamos uma pastoral familiar capaz de acolher, acompanhar, discernir e integrar. Uma pastoral que permita e torne possível os pilares adequados para que a vida que nos está confiada encontre o apoio de que precisa para se desenvolver segundo o sonho — permiti-me o reducionismo — segundo o sonho do «mais idoso»: segundo o sonho de Deus. Obrigado.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
Na exortação Evangelii gaudium, Vossa Santidade diz que o grande problema de hoje é o «individualismo confortável e avarento», e em Amoris laetitia diz que é preciso criar redes entre as famílias. Uma expressão que em italiano soa um pouco mal: «a família alargada». É necessária uma revolução da ternura. Também nós sentimos o vírus do individualismo nas nossas comunidades. Precisamos de ajuda para criar esta rede de relação entre as famílias, capaz de romper o fechamento para se reencontrarem.
É verdade que o individualismo é como que o eixo desta cultura. E este individualismo tem tantos nomes, muitos nomes de raiz egoísta: procuram-se sempre a si mesmos, não olham para o outro, não reparam nas outras famílias... Por vezes, chega-se a ver crueldades pastorais. Por exemplo, falo de uma experiência que conheci quando estava em Buenos Aires: numa diocese vizinha, alguns párocos não queriam batizar as mães solteiras. Mas reparai! Como se fossem animais. E isto é individualismo. «Não, nós somos os perfeitos, este é o caminho...». E um individualismo que procura também o prazer, é hedonista. Estava para dizer uma palavra um pouco forte, mas digo-a entre aspas: aquele «maldito bem-estar» que tanto mal nos fez. O bem-estar. Hoje a Itália tem um terrível decréscimo de nascimentos: está, penso, abaixo de zero. Mas isto começou com aquela cultura do bem-estar, há alguns decénios... Conheci tantas famílias que preferiam — mas por favor, não me acuseis, vós animalistas, porque não quero ofender ninguém — preferiam ter dois ou três gatos, um cão em vez de ter um filho. Porque ter um filho não é fácil, e depois, crescê-lo... Mas o que mais se torna um desafio é que dás vida a uma pessoa que será livre. O cão, o gato, dar-te-ão um afeto, mas um afeto «programado», até um certo ponto, não livre. Se tiveres um, dois, três, quatro filhos, serão livres, deverão percorrer a vida com os riscos da vida. Este é o desafio que assusta: a liberdade. E voltemos ao individualismo: penso que temos medo da liberdade. Também na pastoral: «Mas, o que se dirá se eu fizer isto?... E pode-se?.... E temos medo. «Mas tu tens receio: arrisca! No momento em que estiveres ali, e tiveres que decidir, arrisca! Se errares, há o confessor, o bispo, mas arrisca! É como aquele fariseu: a pastoral das mãos limpas, tudo limpo, tudo em ordem, tudo bonito. Mas fora deste ambiente, quanta miséria, quanto sofrimento, quanta pobreza, quanta falta de oportunidades de desenvolvimento! Trata-se de um individualismo hedonista, de um individualismo que tem medo da liberdade. É um individualismo — não sei se a gramática o permite — diria «aprisionador»: engaiola-te, não te deixa voar em liberdade.
E depois, sim, a família alargada. É verdade, é uma palavra que nem sempre soa bem, mas segundo as culturas. Eu escrevi a Exortação em espanhol... Conheci, por exemplo, famílias... Precisamente há dias, há uma ou duas semanas, veio apresentar as credenciais o embaixador de um país. Veio o embaixador, a família e a senhora que faz a limpeza na casa deles desde há muitos anos: esta é uma família alargada. E esta mulher pertencia à família: uma mulher sozinha, e não só lhe pagavam bem, lhe pagavam de modo regular, mas quando tiveram que vir apresentar as credenciais ao Papa: «Tu vens connosco, porque fazes parte da família». É um exemplo. Isto significa dar lugar às pessoas. E entre as pessoas simples, com a simplicidade do Evangelho, aquela simplicidade boa, há exemplos como este, de alargar a família...
E depois, a outra palavra-chave que disseste, além do individualismo, do medo da liberdade e da afeição ao prazer, disseste outra palavra: a ternura. É a carícia de Deus, a ternura. Uma vez, num Sínodo, disseram isto: «Devemos fazer a revolução da ternura». E alguns Padres — há anos — disseram: «Mas não se pode dizer isto, não soa bem». Mas hoje podemos dizê-lo: falta ternura, falta ternura. Acariciar não só as crianças, os doentes, acariciar todos, os pecadores... E há bons exemplos de ternura... A ternura é uma linguagem válida para os pequeninos, para quantos nada possuem: uma criança conhece o pai e a mãe pelas carícias, depois pela voz, mas é sempre a ternura. E eu gosto de ouvir quando o pai ou a mãe se dirigem ao filho que começa a falar, também o pai e a mãe se tornam crianças [imita], falam assim... Todos o vimos, é verdade. Esta é a ternura. É abaixar-se ao nível do outro. Foi o caminho que Jesus percorreu. Jesus não considerou um privilégio ser Deus: abaixou-se (cf. Fl 2, 6-7). E falou a nossa língua, falou com os nossos gestos. E o caminho de Jesus é o da ternura. Eis: o hedonismo, o medo da liberdade, é precisamente este o individualismo contemporâneo. É preciso sair pela vereda da ternura, da escuta, do acompanhamento, sem perguntar... Sim, com esta linguagem, com esta atitude as famílias crescem: há a pequena família, depois da grande família dos amigos ou daqueles que vêm... Não sei se respondi, mas parece-me que sim, veio-me isto.
Sabemos que como comunidades cristãs não queremos renunciar às exigências radicais do Evangelho da família. Como evitar que nas nossas comunidades haja uma dupla moral, uma exigente e outra permissiva, uma rigorista e uma laxista?
Nenhuma delas é verdadeira: nem o rigorismo nem o laxismo são verdades. O Evangelho escolhe outro percurso. Por isso, aquelas quatro palavras — acolher, acompanhar, integrar, discernir — sem meter o nariz na vida moral das pessoas. Para vossa tranquilidade, devo dizer-vos que tudo o que está escrito na Exortação — e retomo as palavras de um grande teólogo que foi secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Schönborn, o qual a apresentou — tudo é tomista, do início ao fim. É a doutrina segura. Mas muitas vezes nós queremos que a doutrina segura tenha aquela certeza matemática que não existe, nem com o laxismo, de mãos-largas, nem com a rigidez. Pensemos em Jesus: a história é a mesma, repete-se. Quando Jesus falava ao povo, as pessoas diziam: «Ele não fala como os nossos doutores da lei, fala como alguém que tem autoridade» (cf. Mc 1, 22). Aqueles doutores conheciam a lei, e tinham uma lei específica para cada caso, sendo no final cerca de 600 preceitos. Tudo regulado, tudo. E o Senhor — vejo a ira de Deus no capítulo 23 de Mateus, é terrível aquele capítulo — sobretudo a mim faz-me impressão quando fala do quarto mandamento e diz: «Vós, que em vez de dar de comer aos vossos pais idosos, lhes dizeis: “Não, fiz a promessa, é melhor o altar do que vós”, estais em contradição» (cf. Mc 7, 10-13). Jesus era assim, e foi condenado por ódio, armavam-lhe sempre ciladas: «Pode-se fazer isto ou não?». Pensemos na cena da adúltera (cf. Jo 8, 1-11). Está escrito: deve ser lapidada. É a moral. É clara. E não rígida, esta não é rígida, é uma moral clara. Deve ser lapidada. Porquê? Pela sacralidade do matrimónio, a fidelidade. Nisto Jesus é claro. A palavra é adultério. É claro. E Jesus não se dá por vencido, deixa passar o tempo, escreve no chão... E depois diz: «Começai: o primeiro de vós que estiver sem pecado, lance a primeira pedra». Naquele caso, Jesus faltou à lei. Foram-se embora, a começar pelos mais idosos. «Mulher, ninguém te condenou? Nem eu». Qual é a moral? Era de a lapidar. Mas Jesus falta, falta em relação à moral. Isto faz-nos pensar que não se pode falar da «rigidez», da «segurança», de ser matemático na moral, como a moral do Evangelho.
Depois, continuemos com as mulheres: quando aquela senhora ou jovem [a Samaritana, cf. Jo 4, 1-27], não sei o que era, começou a fazer um pouco a «catequista» e a dizer: «Mas é preciso adorar Deus sobre este monte ou sobre aquele?...». Jesus disse-lhe: «E o teu marido?...» — «Não o tenho» — «Disseste a verdade». Com efeito ela tinha tantas medalhas de adultério, tantas «honorificências»... Contudo foi ela, antes de ser perdoada, foi a «apóstola» de Samaria. E então como se deve fazer? Voltemos ao Evangelho, voltemos a Jesus! Isto não significa deitar fora a água suja com a criança, não. Isto significa procurar a verdade; e que a moral é um ato de amor, sempre: amor a Deus, amor ao próximo. É também um ato que deixa espaço à conversão do outro, não condena imediatamente, deixa espaço.
Certa vez — há tantos padres, aqui, desculpai-me — o meu predecessor, não, o outro, o cardeal Aramburu, que faleceu depois do meu predecessor, quando eu fui nomeado arcebispo deu-me um conselho: «Quando vires que um sacerdote vacila, escorrega um pouco, chama-o e diz-lhe: “Falemos um pouco, ouvi dizer que te encontras nesta situação, quase de vida dupla, não sei...”; e verás que aquele sacerdote dirá: “Não, não é verdade, não...”; tu interrompe-o e diz-lhe: “Ouve, volta para casa, reflete e retorna daqui a quinze dias, e voltaremos a falar”; e nesses quinze dias aquele sacerdote — assim ele me disse — tinha tempo para refletir, reconsiderar-se diante de Jesus e voltar: “sim, é verdade. Ajuda-me!”». É sempre necessário tempo. «Mas, Padre, aquele padre viveu, e celebrou a Missa, em pecado mortal naqueles quinze dias, assim diz a moral, e o senhor o que diz? O que é melhor? O que foi melhor? Que o bispo tenha tido aquela generosidade de lhe conceder quinze dias para refletir, com o risco de celebrar a Missa em pecado mortal, é melhor isto ou a outra, a moral rígida? E a propósito da moral rígida, conto-vos um facto ao qual eu mesmo assisti. Quando estudávamos teologia, o exame para ouvir as Confissões — «ad audiendas», chamava-se — fazia-se no terceiro ano, mas nós, do segundo, tínhamos a autorização de assistir para nos prepararmos; e uma vez, a um nosso companheiro, foi proposto um caso, de uma pessoa que se foi confessar, mas um caso tão complexo, relativo ao sétimo mandamento, «de justitia et jure»; mas trata-se de um caso tão irreal...; e este companheiro, que era uma pessoa normal, disse ao professor: «Mas, padre, isto na vida não se encontra» — «Sim, mas está nos livros!». Eu vi isto.
Onde quer que vamos, hoje ouvimos falar de crise do matrimónio. E então queria perguntar-lhe: sobre o que podemos apostar hoje para educar os jovens no amor, sobretudo no matrimónio sacramental, superando as suas resistências, o ceticismo, as desilusões, o medo do definitivo?
Começo pela última palavra: nós também vivemos numa cultura do provisório. A um bispo, ouvi dizer há alguns meses, apresentou-se um jovem que tinha terminado os estudos universitários, um bom jovem, e disse-lhe: «Eu desejo ser sacerdote, mas por dez anos». É a cultura do provisório. E isto acontece em todo o lado, até na vida sacerdotal, na vida religiosa. O provisório. E por isso uma parte dos nossos matrimónios sacramentais são nulos, porque eles [os esposos] dizem: «Sim, por toda a vida», mas não sabem o que estão a dizer, porque têm outra cultura. Dizem-no, e com boa vontade, mas não têm consciência. Certa vez, uma senhora em Buenos Aires, repreendeu-me: «Vós padres sois astutos, porque para serdes padres estudais oito anos, e depois, se as coisas não correm bem e o padre encontra uma moça que lhe agrada... no fim recebe a autorização para se casar e formar uma família. E a nós, leigos, que devemos receber o sacramento para toda a vida e indissolúvel, pretendem que façamos quatro conferências, e isto para toda a vida!». Na minha opinião, um dos problemas é este: a preparação para o matrimónio.
E depois a questão está muito relacionada com o fator social. Recordo-me, telefonei a um jovem — aqui na Itália no ano passado — que tinha conhecido tempos antes em Ciampino e que se casava. Telefonei-lhe e disse-lhe: «A tua mãe informou-me que te casas no próximo mês... Onde o farás?...» — «Não sabemos, porque estamos a procurar a igreja que se harmonize com o vestido da minha noiva... E depois temos que fazer tantas coisas: as lembranças de casamento, e depois procurar um restaurante que não fique longe...». São estas as preocupações! Um facto social. Como mudar isto? Não sei. Um facto social em Buenos Aires: eu proibi que se fizessem matrimónios religiosos, em Buenos Aires, nos casos a que nós chamamos «matrimónios de apuro», matrimónios «apressados» [reparadores], quando a noiva fica grávida. Agora estão a mudar as coisas, mas há isto: socialmente deve estar tudo em regra, chega a criança, casemo-nos. Eu proibi que o fizessem, porque não são livres, não são livres! Talvez se amem. E vi casos bonitos, nos quais depois de dois-três anos se casaram, e vi entrar na igreja pai, mãe e criança de mãos dadas. Mas sabiam bem o que faziam. A crise do matrimónio acontece porque não se sabe o que é o sacramento, a beleza do sacramento: não se sabe que é indissolúvel, não se sabe que é para toda a vida. É difícil. Outra minha experiência em Buenos Aires: os párocos, quando faziam os cursos de preparação, havia sempre 12-13 casais, não mais, nunca chegavam a 30 pessoas. A primeira pergunta que eu fazia era: «Quantos de vós convivem?». A maioria levantava a mão. Preferem conviver, e este é um desafio, exige trabalho. Não dizer imediatamente: «Por que não te casas na igreja?». Não. Acompanhá-los: esperar e fazer maturar. E fazer maturar a fidelidade. Nas aldeias da Argentina, na zona do Nordeste, há uma superstição: quando os noivos têm um filho, convivem. Nas zonas rurais isto acontece. Depois, quando o filho tem que ir para a escola, fazem o matrimónio civil. E depois, como avós, fazem o matrimónio religioso. É a superstição, porque dizem que fazê-lo imediatamente religioso assusta o marido! Temos que lutar também contra estas superstições. Contudo digo-vos que vi deveras tanta fidelidade nestas convivências, tanta fidelidade; e estou certo de que este é um matrimónio verdadeiro, têm a graça do matrimónio, precisamente pela sua fidelidade. Mas há superstições locais. É a pastoral mais difícil, a do matrimónio.
E depois, a paz na família. Não só quando discutem entre si, e o conselho é sempre não acabar o dia sem fazer as pazes, porque a guerra fria do dia seguinte é pior. Sim, é pior. Mas quando se metem pelo meio os parentes, os sogros, porque não é fácil ser sogro ou sogra! Não é fácil. Ouvi uma coisa boa, que agradará às mulheres: quando uma mulher sabe pela ecografia que está grávida de um menino, a partir daquele momento começa a estudar para ser sogra!
Volto a ser sério: a preparação para o matrimónio, deve ser feita com proximidade, sem se assustar, lentamente. É um caminho de conversão, muitas vezes. Há jovens e moças que têm uma pureza, um amor grande e sabem o que fazem. Mas são poucos. A cultura de hoje apresenta-nos estes jovens, são bons, e temos que nos aproximar deles e acompanhá-los, acompanhá-los, até ao momento da maturidade. E ali, que recebam o sacramento, mas jubilosos, alegres! É preciso tanta paciência, tanta paciência. É a mesma paciência que é necessária para a pastoral das vocações. Ouvir as mesmas coisas, ouvir: o apóstolado da escuta, ouvir, acompanhar... Não vos assusteis, por favor, não vos assusteis. Não sei se respondi, mas falo-te da minha experiência, daquilo que vivi como pároco.
Muito obrigado e rezai por mim!
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