ENCONTRO COM OS BISPOS DA AMÉRICA CENTRAL (SEDAC)
DISCURSO DO SANTO PADRE
Igreja de São Francisco de Assis (Panamá)
Quinta-feira, 24 de janeiro de 2019
Amados irmãos!
Agradeço ao Arcebispo de São Salvador, D. José Luis Escobar Alas, as palavras de boas-vindas que me dirigiu em nome de todos os presentes, entre os quais tenho a alegria de ver um amigo das nossas traquinices juvenis. Sinto-me feliz por poder encontrar-vos e partilhar, de forma mais familiar e direta, os vossos anseios, projetos e sonhos de pastores a quem o Senhor confiou o cuidado do seu povo santo. Obrigado pela receção fraterna.
Encontrar-me convosco oferece-me também a oportunidade de poder abraçar e sentir-me mais próximo dos vossos povos, poder fazer meus os seus anseios e também os seus desânimos, mas sobretudo aquela fé corajosa que sabe animar a esperança e provocar a caridade. Obrigado por me permitirdes aproximar desta fé provada, mas simples do rosto pobre do vosso povo, que sabe que «Deus está presente, não dorme; está ativo, observa e ajuda» (São Óscar Romero, Homilia, 16/XII/1979).
Este encontro recorda-nos um acontecimento eclesial de grande relevância. Os pastores desta região foram os primeiros a criar na América um organismo de comunhão e participação que deu, e continua a dar, abundantes frutos. Refiro-me ao Secretariado Episcopal da América Central, o SEDAC: um espaço de comunhão, discernimento e empenho que nutre, revitaliza e enriquece as vossas Igrejas. Pastores que souberam progredir, dando um sinal que, longe de ser um elemento apenas programático, indicou como o futuro da América Central – e de qualquer outra região no mundo – passa necessariamente pela lucidez e capacidade que se possui para ampliar a visão, unir esforços num trabalho paciente e generoso de escuta, compreensão, dedicação e empenho, e poder assim discernir os novos horizontes para onde nos está a conduzir o Espírito (cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 235).[1]
Nestes setenta e cinco anos passados desde a sua fundação, o SEDAC procurou partilhar as alegrias e tristezas, as lutas e esperanças dos povos da América Central, cuja história se forjou entrelaçando-se com a história do vosso povo. Muitos homens e mulheres, sacerdotes, consagrados, consagradas e leigos ofereceram a vida até ao derramamento do próprio sangue, para manter viva a voz profética da Igreja contra a injustiça, o empobrecimento de tantas pessoas e o abuso do poder. Lembro-me, quando era jovem sacerdote, que o nome de alguns de vós era tido por suspeito, como se fosse uma palavra feia, mas a vossa constância indicou-nos a estrada. Obrigado! Recordais-nos que «quem deseja verdadeiramente dar glória a Deus com a sua vida, quem realmente se quer santificar para que a sua existência glorifique o Santo, é chamado a obstinar-se, gastar-se e cansar-se procurando viver as obras de misericórdia» (Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 107). E fazê-lo, não como esmola, mas como vocação.
Entre tais frutos proféticos da Igreja na América Central, apraz-me destacar a figura de São Óscar Romero, que tive o privilégio de canonizar recentemente no contexto do Sínodo dos Bispos sobre os jovens. A sua vida e magistério são fonte de inspiração para as nossas Igrejas e particularmente para nós, bispos. Também o nome dele se considerava como uma palavra feia: suspeito, excomungado nas bisbilhotices privadas de muitos Bispos.
O lema que escolheu para o brasão episcopal, e campeia na lápide da sua sepultura, expressa claramente o seu princípio inspirador e a realidade da sua vida de pastor: «Sentir com a Igreja». Uma bússola que marcou a sua vida na fidelidade, mesmo nos momentos mais turbulentos.
Este é um legado que pode tornar-se testemunho ativo e vivificante para nós, chamados por nossa vez ao martírio pela entrega diária ao serviço dos nossos povos; e, sobre tal legado, gostaria de me basear nesta reflexão: «sentir com a Igreja» é a reflexão que desejo partilhar convosco, uma reflexão sobre a figura de Romero. Sei que, entre nós, há pessoas que o conheceram pessoalmente – como o cardeal Rosa Chávez… O cardeal Quarracino dizia quer era candidato ao Prémio Nobel para a fidelidade! – de modo que, se me equivocar em alguma observação, Eminência, pode-me corrigir. Não faz mal! Invocar a figura de Romero significa invocar a santidade e o caráter profético que vive no DNA das vossas Igrejas particulares.
Sentir com a Igreja
1. Perceção e gratidão
Santo Inácio, ao propor as regras para sentir com a Igreja – desculpai a publicidade – procura ajudar o exercitante a superar qualquer tipo de falsas dicotomias ou antagonismos que possam reduzir a vida do Espírito, na tentação habitual de acomodar a Palavra de Deus ao próprio interesse. Assim, possibilita ao exercitante a graça de se sentir e saber parte dum corpo apostólico maior do que ele, mas ao mesmo tempo conservando a consciência real das suas forças e possibilidades: não dar parte de fraco, nem se fazer esquisito ou imprudente, mas sentir-se parte de um todo, que será sempre mais do que a soma das partes (cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 235) e que está acompanhado por uma Presença que sempre o superará (cf. Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 8).
Por isso, na esteira de São Óscar, gostaria de colocar, no centro deste primeiro ponto do sentir com a Igreja, a perceção e a gratidão por tanto bem recebido, sem o merecer. Romero foi capaz de sintonizar e aprender a viver a Igreja, porque amava intimamente quem o gerara na fé. Sem este amor íntimo, será muito difícil entender a sua história e conversão, dado que foi este o único amor que o guiou até à entrega no martírio; um amor, que brota da perceção de receber um dom totalmente gratuito, que não nos pertence, libertando-nos de toda a pretensão e tentação de nos considerarmos seus proprietários ou os únicos intérpretes. Não inventamos a Igreja: esta não nasceu connosco e continuará sem nós. Tal atitude, longe de nos abandonar à apatia, desperta uma insondável e extraordinária gratidão que tudo alimenta. O martírio não é sinónimo de pusilanimidade nem a atitude de alguém que não ama a vida nem sabe reconhecer o seu valor. Pelo contrário, o mártir é aquele que é capaz de encarnar e traduzir na vida esta ação de graças.
Romero sentiu com a Igreja, porque, antes de mais nada, amou a Igreja como mãe que o gerou na fé, considerando-se membro e parte dela.
2. Um amor, com sabor a povo
Este amor, feito de adesão e gratidão, levou-o a abraçar, com paixão mas também com dedicação e estudo, toda a contribuição e renovação propostas pelo magistério do Concílio Vaticano II. Nele encontrava a mão segura para seguir Cristo. Não foi ideólogo nem ideológico; a sua ação nasceu duma compenetração sobre os documentos conciliares. Iluminado por este horizonte eclesial, sentir com a Igreja significa para Romero contemplá-la como Povo de Deus. Com efeito, o Senhor não quis salvar-nos permanecendo cada um isolado e separado, mas quis constituir um povo que O confessasse na verdade e O servisse na santidade (cf. Const. dogm. Lumen gentium, 9). Um povo que, na sua totalidade, possui, guarda e celebra a «unção do Santo» (Ibid., 12), e perante o qual Romero se colocava à escuta para não recusar a inspiração d’Ele (cf. São Óscar Romero, Homilia, 16/VII/1978). Mostra-nos assim que o pastor, para procurar e encontrar o Senhor, deve aprender e escutar as pulsações do coração do seu povo, sentir «o odor» dos homens e mulheres de hoje até ficar impregnado das suas alegrias e esperanças, tristezas e angústias (cf. Const. past. Gaudium et spes, 1) e, deste modo, compreender em profundidade a Palavra de Deus (cf. Const. dogm. Dei Verbum, 13). Deve escutar o povo que lhe foi confiado até respirar e descobrir, através dele, a vontade de Deus que nos chama (cf. Francisco, Discurso na Vigília de Oração pelo Sínodo sobre a Família, 4/X/2014). Deve escutar sem dicotomias nem falsos antagonismos, porque só o amor de Deus é capaz de harmonizar todos os nossos amores num mesmo sentir e olhar.
Em suma, para ele, sentir com a Igreja é tomar parte na glória da Igreja, que consiste em trazer no próprio íntimo toda a kenosis de Cristo. Na Igreja, Cristo vive no meio de nós e, por isso, ela deve ser humilde e pobre, pois uma Igreja arrogante, uma Igreja cheia de orgulho, uma Igreja autossuficiente não é a Igreja da kenosis (cf. São Óscar Romero, Homilia, 1/X/1978).
3. Trazer dentro de si mesmo a kenosis de Cristo
Esta não é apenas a glória da Igreja, mas também uma vocação, um convite para fazermos dela a nossa glória pessoal e caminho de santidade. A kenosis de Cristo não é algo do passado, mas garantia atual para sentir e descobrir a sua presença operante na história; uma presença que não podemos nem queremos silenciar, porque sabemos e experimentamos que só Ele é «Caminho, Verdade e Vida». A kenosis de Cristo lembra-nos que Deus salva na história, na vida de cada ser humano, já que a mesma é também a sua história e, nela, vem ao nosso encontro (cf. São Óscar Romero, Homilia, 7/XII/1978). Irmãos, é importante não ter medo de nos aproximarmos e tocarmos as feridas do nosso povo, que são também as nossas feridas, e fazê-lo segundo o estilo do Senhor. O pastor não pode estar longe do sofrimento do seu povo; mais ainda, poderíamos dizer que o coração do pastor se mede pela sua capacidade de deixar-se comover à vista de tantas vidas feridas e ameaçadas. Fazê-lo segundo o estilo do Senhor significa deixar que este sofrimento toque e marque as nossas prioridades e gostos, toque e marque o uso do tempo e do dinheiro e inclusive a forma de rezar, para podermos ungir tudo e todos com a consolação da amizade de Jesus numa comunidade de fé que possua e abra um horizonte sempre novo que dê sentido e esperança à vida (cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 49). A kenosis de Cristo exige que se abandone a virtualidade da existência e dos discursos para escutar o rumor e o apelo constante de pessoas reais que nos desafiam a criar laços. E – permiti que vos diga – as redes servem para criar vínculos, mas não raízes; são incapazes de nos conferir pertença, de nos fazer sentir parte de um mesmo povo. E, sem este sentir, todas as nossas palavras, reuniões, encontros, escritos serão sinal duma fé que não soube acompanhar a kenosis do Senhor, uma fé que ficou a meio do caminho, se é que, pior ainda – recordo-me dum pensador latino-americano –, não acaba por ser uma religião com um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja e uma Igreja sem povo.
- A kenosis de Cristo é jovem
Esta Jornada Mundial da Juventude é uma oportunidade única para sair ao encontro e aproximar-se ainda mais da realidade dos nossos jovens, realidade cheia de esperanças e sonhos, mas também profundamente marcada por tantas feridas. Com eles, poderemos ler de forma renovada a nossa época e reconhecer os sinais dos tempos, pois, como afirmaram os Padres Sinodais, os jovens são um dos «lugares teológicos» onde o Senhor nos dá a conhecer algumas das suas expetativas e desafios para construir o futuro (cf. Sínodo sobre os Jovens, Documento final, 64). Com eles, poderemos ver melhor como tornar o Evangelho mais acessível e credível no mundo em que vivemos; são uma espécie de termómetro para saber a que ponto estamos como comunidade e como sociedade.
Os jovens trazem dentro uma inquietude que devemos apreciar, respeitar, acompanhar e que faz muito bem a todos nós, porque nos provoca lembrando-nos que o pastor nunca deixa de ser discípulo e está a caminho. Esta sã inquietude coloca-nos em movimento, antecipando-nos. Assim no-lo recordaram os Padres Sinodais ao dizer que, «em certos aspetos, os jovens podem estar mais adiantados do que os pastores» (Ibid., 66). Em relação ao seu rebanho, o Pastor nem sempre caminha à frente: umas vezes, deve ir à frente para indicar a estrada; outras vezes, deve estar no meio para «farejar» o que acontece, para compreender o rebanho; outras vezes ainda, deve caminhar na retaguarda para proteger os últimos, ver que ninguém fique para trás tornando-se material de descarte. Deve-nos encher de alegria constatar que a sementeira não foi em vão. Muitas das aspirações e intuições, que formam tal inquietude dos jovens, desenvolveram-se dentro da família, alimentadas por uma avó ou uma catequista. A propósito de avós, é já a segunda vez que vejo uma: vi-a ontem e voltei a vê-la hoje! Uma velhinha, magra, da minha idade ou até mais, com mitra (enfiara uma mitra que fizera de papelão) e um letreiro que dizia: «Santidade, as avós também fazem barulho». Uma maravilha de pessoa! E os jovens aprenderam as coisas em família ou na paróquia, na pastoral educativa ou juvenil; desejos, que cresceram na escuta do Evangelho e em comunidades de fé viva e fervorosa onde este encontra terra onde germinar. Quanto devemos agradecer pelo facto de haver jovens desejosos de Evangelho! Cansam, é verdade; às vezes, incomodam. Vem-me ao pensamento esta frase que um filósofo grego, falando de si mesmo, dizia a propósito dos jovens: «[Os jovens] são como um moscardo no dorso de um nobre cavalo, para que não se adormente» (cf. Platão, Apologia de Sócrates). O cavalo somos nós! Esta realidade estimula-nos a um esforço maior para ajudá-los a crescer, oferecendo-lhes espaços maiores e melhores que os possam gerar segundo o sonho de Deus. A Igreja, por sua natureza, é Mãe e, como tal, gera e resguarda a vida protegendo-a de tudo o que possa ameaçar o seu desenvolvimento: uma gestação na liberdade e para a liberdade. Por isso, exorto-vos a promover programas e centros educativos que saibam acompanhar, apoiar e responsabilizar os vossos jovens; por favor, «roubai-os» à rua, antes que a cultura de morte, «vendendo-lhes fumo» e soluções mágicas, se apodere e aproveite da sua inquietude e da sua imaginação. Fazei-o, não com paternalismo, porque não o suportam, nem como quem olha de cima para baixo, pois também não é isso o que o Senhor nos pede, mas como pais, como de irmão para irmão. São rosto de Cristo para nós e, a Cristo, não O podemos olhar de cima para baixo, mas de baixo para cima (cf. São Óscar Romero, Homilia, 2/IX/1979).
Infelizmente, há muitos jovens que foram seduzidos por respostas imediatas que hipotecam a vida. E muitos outros a quem foi dada uma ilusão mesquinha em alguns movimentos, tornando-os então ou pelagianos ou convencidos de bastar-se a si mesmos, para depois os abandonarem no meio do caminho. Diziam-nos os Padres Sinodais que os jovens, por constrição ou falta de alternativas, se encontram mergulhados em situações altamente conflituosas e sem solução à vista: violência doméstica, feminicídio – uma chaga, que aflige o nosso continente –, bandas armadas e criminosas, tráfico de droga, exploração sexual de menores e de tantos que já não o são, etc. Custa constatar que, na raiz de muitas destas situações, estão experiências de orfandade, fruto de uma cultura e uma sociedade transviada: sem mãe, tornou-os órfãos. Lares desfeitos devido tantas vezes a um sistema económico que deixou de ter como prioridade as pessoas e o bem comum, fazendo da especulação o «seu paraíso» onde continuar a «engordar» sem se importar à custa de quem. Assim, os nossos jovens sem o calor duma casa, nem família, nem comunidade, nem pertença são deixados à mercê do primeiro vigarista que lhes apareça.
Não nos esqueçamos que «uma verdadeira dor que sai do homem pertence, antes de tudo, a Deus» (Georges Bernanos, Diario de un cura rural, 74). Não separemos o que Ele quis unir no seu Filho.
O futuro exige que se respeite o presente, reconhecendo a dignidade das culturas dos vossos povos e esforçando-se por valorizá-las. Também nisto se joga a dignidade: na autoestima cultural. Os vossos povos não são o «horto» da sociedade nem de ninguém; têm uma história rica que deve ser aceite, valorizada e incentivada. Nestas terras, foram plantadas as sementes do Reino; temos obrigação de as identificar, cuidar e proteger para que nenhum bem plantado por Deus definhe devido a interesses espúrios que, por todo o lado, semeiam corrupção e crescem despojando os mais pobres. Cuidar das raízes é tutelar o rico património histórico, cultural e espiritual que esta terra soube amalgamar ao longo dos séculos. Comprometei-vos e erguei a voz contra a desertificação cultural, contra a desertificação espiritual dos vossos povos, que provoca uma indigência radical, pois deixa-os sem a indispensável imunidade vital que sustenta a dignidade nos momentos de maior dificuldade. E congratulo-me convosco pela iniciativa de começar esta Jornada Mundial da Juventude pela Jornada da juventude indígena – penso que na diocese de David – e a Jornada da juventude de origem africana: foi um bom passo para mostrar as muitas facetas do nosso povo.
Na última carta pastoral, afirmáveis: «Ultimamente a nossa região tem sofrido o impacto da migração realizada de forma nova, por ser maciça e organizada, e que evidenciou os motivos que levam a uma migração forçada e os perigos que cria para a dignidade da pessoa humana» (SEDAC, Mensagem ao Povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade, 30/XI/2018).
Muitos dos migrantes têm rosto jovem; procuram um bem maior para a própria família, não temendo arriscar e deixar tudo para lhe oferecer o mínimo de condições que garantam um futuro melhor. Aqui não basta a denúncia, mas devemos também anunciar concretamente uma «boa nova». Graças à sua universalidade, a Igreja pode oferecer uma hospitalidade fraterna e acolhedora, de modo que as comunidades de origem e destino dialoguem e contribuam para superar medos e difidências e fortalecer os laços que as migrações, no imaginário coletivo, ameaçam romper. «Acolher, proteger, promover e integrar» as pessoas podem ser os quatro verbos com que a Igreja, nesta situação migratória, conjugue a sua maternidade no momento atual da história (cf. Sínodo sobre os Jovens, Documento final, 147). O Vigário-Geral de Paris, Mons. Benoist de Sinety, acaba de publicar um livro com o subtítulo «Acolher os migrantes, um apelo à coragem» (cf. Il faut que des voix s’élèvent. Accueil des migrants, un appel au courage, Paris 2018). É uma maravilha, este livro. Ele está aqui, na Jornada.
Todos os esforços que puderdes realizar para lançar pontes entre as comunidades eclesiais, paroquiais, diocesanas, bem como através das Conferências Episcopais, constituem um gesto profético da Igreja, que, em Cristo, é «o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano» (Const. dogm. Lumen gentium, 1). Assim dissipa-se a tentação de ficar apenas pela denúncia e realiza-se o anúncio da Vida nova que o Senhor nos dá.
Lembremo-nos da exortação de São João: «Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele? Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade» (1 Jo 3, 17-18).
Todas estas situações nos interpelam; são situações que nos chamam à conversão, à solidariedade e a uma ação educativa incisiva nas nossas comunidades. Não podemos ficar indiferentes (cf. Sínodo sobre os Jovens, Documento final, 41-44). O mundo descarta, o espírito do mundo descarta: sabemo-lo e lamentamo-lo. A kenosis de Cristo, não: já o experimentamos e continuamos a experimentar na própria carne com o perdão e a conversão. Esta tensão constringe-nos a questionar-nos sem cessar: de que parte queremos estar?
- A kenosis de Cristo é sacerdotal
São bem conhecidos a amizade do Arcebispo Romero com o Padre Rutilio Grande e o impacto que o assassínio deste teve na sua vida; foi um acontecimento que marcou profundamente o seu coração de homem, sacerdote e pastor. Romero não era um administrador de recursos humanos, não geria pessoas nem organizações; Romero sentia, sentia com amor de pai, amigo e irmão. Uma medida um pouco alta, mas útil para avaliar o nosso coração episcopal, uma medida à vista da qual podemos interrogar-nos: quanto me afeta a vida dos meus sacerdotes? Que impacto deixo ter em mim aquilo que vivem, chorando com as suas dores, congratulando-me e regozijando-me com as suas alegrias? Comecemos a medir o funcionarismo e clericalismo eclesiais – infelizmente tão difusos, constituindo uma caricatura e uma perversão do ministério – por estes interrogativos. Não é questão de mudar estilos, hábitos ou linguagem (certamente importantes); é questão sobretudo de impacto e capacidade de espaço, nos nossos programas episcopais, para receber, acompanhar e sustentar os nossos sacerdotes: um «espaço real» para nos ocuparmos deles. Isto faz de nós pais fecundos.
Normalmente recai sobre eles, duma maneira especial, a responsabilidade de fazer com que este povo seja o povo de Deus. Eles encontram-se na primeira linha: carregam sobre si o cansaço do dia e o seu calor (cf. Mt 20, 12), estão sujeitos a inumeráveis situações diárias que podem deixá-los mais vulneráveis e, por isso, precisam também da nossa proximidade, da nossa compreensão e encorajamento, precisam da nossa paternidade. O resultado do trabalho pastoral, da evangelização na Igreja e da missão não se baseiam na riqueza dos meios e recursos materiais, nem na quantidade de eventos ou atividades que realizamos, mas na centralidade da compaixão: um dos grandes distintivos que podemos, como Igreja, oferecer aos nossos irmãos. Preocupa-me ver como a compaixão perdeu a sua centralidade na Igreja. Até mesmo os grupos católicos a perderam – ou estão a perdê-la, para não sermos pessimistas. Mesmo nos meios de comunicação social católicos, a compaixão não existe. Há a estigmatização, a condenação, a maldade, a obstinação, a supervalorização de si mesmo, a denúncia de heresia... Oxalá não se perca a compaixão na nossa Igreja; oxalá não se perca, no Bispo, a centralidade da compaixão. A kenosis de Cristo é a expressão máxima da compaixão do Pai. A Igreja de Cristo é a Igreja da compaixão; e isto começa em casa. É sempre bom perguntar-nos como pastores: que impacto tem em mim a vida dos meus sacerdotes? Sou capaz de ser um pai ou consolo-me com ser um mero executor? Deixo que me incomodem? Lembro-me das palavras de Bento XVI quando falava aos seus compatriotas no início do pontificado: «Cristo não nos prometeu uma vida confortável. Quem deseja comodidades, com Ele errou direção. Mas Ele mostra-nos o caminho rumo às coisas grandes, o bem, rumo à vida humana autêntica» (Discurso às Delegações e peregrinos alemães, 25/IV/2005). O bispo deve crescer todos os dias na sua capacidade de se deixar incomodar, de ser vulnerável aos seus padres. Estou a pensar num Bispo, um Bispo emérito duma diocese grande, grande trabalhador; recebia em audiência todos os dias de manhã e frequentemente, com muita frequência, quando terminava as audiências da manhã e com uma vontade enorme de ir comer, acontecia estarem ali à espera dele dois padres sem audiência marcada na agenda. Então voltava para trás e escutava-os como se tivesse a manhã toda à sua frente. Deixar-se incomodar e deixar que a massa acabe recozida e o bife frio. Deixar-se incomodar pelos sacerdotes.
Sabemos que o nosso trabalho, nas visitas e encontros que realizamos, sobretudo nas paróquias, tem uma dimensão e uma componente administrativas, a que é necessário atender. É preciso certificar-se que seja feito, mas isto não significa que caiba a nós mesmos utilizar em tarefas administrativas o pouco tempo que temos. O fundamental nas visitas e que não podemos delegar, é a escuta. Há muitas coisas que fazemos todos os dias e que deveríamos confiar a outrem. Aquilo que, ao contrário, não podemos delegar é a capacidade de ouvir, a capacidade de acompanhar a saúde e a vida dos nossos sacerdotes. Não podemos delegar noutros a porta aberta para eles; uma porta aberta para criar as condições que tornem possível a confiança mais do que o medo, a sinceridade mais do que a hipocrisia, o intercâmbio franco e respeitoso mais do que o monólogo disciplinar.
Vêm-me à memória estas palavras do Beato Rosmini – acusado de heresia e hoje é Beato –: «Não há dúvida de que apenas os grandes homens podem formar outros grandes homens (…). Nos primeiros séculos, a casa do bispo era o seminário dos sacerdotes e diáconos. A presença e a santa conversação do seu prelado revelavam-se uma lição candente, contínua, sublime, na qual se aprendia conjuntamente a teoria nas suas doutas palavras e a prática nas assíduas ocupações pastorais. E foi assim que os jovens “atanásios” cresceram junto dos “alexandres” » (António Rosmini, Las cinco llagas de la santa Iglesia, 63).
É importante que o pároco encontre o pai, o pastor no qual «se vê espelhado» e não o administrador que quer «passar revista às tropas». Com todas as coisas em que nos diferenciamos e até mesmo aquelas em que não estamos de acordo e as discussões que possam haver – sendo normal e desejável que existam –, é fundamental que os padres sintam o bispo como um homem capaz de gastar-se e expor-se por eles, fazê-los caminhar para diante e estender-lhes a mão quando estão empantanados; como um homem de discernimento que saiba orientar e encontrar caminhos concretos e praticáveis nas várias encruzilhadas de cada história pessoal. Quando eu estava na Argentina, às vezes ouvia padres dizerem: «Telefonei para o bispo, e a secretária disse-me que ele tinha a agenda cheia, que voltasse a chamar dali a vinte dias; e nem me perguntou que queria… «Queria ver o Bispo» – «Não pode; coloco-o na lista de espera». É claro que, depois, o padre não voltou a chamar e continuou com aquilo que lhe queria perguntar – bem ou mal – dentro de si. Isto não é um conselho, mas algo que vos digo do coração: se tendes a agenda cheia, agradeçamos a Deus! Assim comereis em paz, porque ganhastes o pão; mas, se virdes o telefonema dum padre, hoje, no máximo amanhã, deveis chamá-lo para lhe dizer: «Chamaste, que se passa? Pode esperar até tal dia ou não?» Aquele padre, a partir de então, sabe que tem um pai.
Etimologicamente, o termo «autoridade» deriva da raiz latina augere que significa aumentar, promover, fazer progredir. No pastor, a autoridade consiste de modo particular em ajudar a crescer, em promover os seus presbíteros, em vez de se promover a si mesmo (isto faz dele um solteirão, não um pai). A alegria do pai/pastor é ver que os seus filhos cresceram e tornaram-se fecundos. Irmãos, seja esta a nossa autoridade e o sinal da nossa fecundidade.
- Último ponto: a kenosis de Cristo é pobre
Sentir com a Igreja é sentir com o povo fiel, o povo de Deus que sofre e espera; é saber que a nossa identidade ministerial nasce e compreende-se à luz desta pertença única e constitutiva do nosso ser. Neste sentido, gostaria de recordar convosco o que Santo Inácio nos escrevia a nós, jesuítas: «A pobreza é mãe e muro», gera e preserva. Mãe, porque nos chama à fecundidade, à geração, à capacidade de doação que seria impossível num coração avarento ou empenhado a acumular. E muro, porque nos protege duma das mais subtis tentações que nós, consagrados, temos de enfrentar: a mundanidade espiritual, o revestir de valores religiosos e «piedosos» a ambição de poder e protagonismo, a vaidade e, inclusivamente, o orgulho e a soberba. Muro e mãe, que nos ajudam a ser uma Igreja cada vez mais livre, porque está centrada na kenosis do seu Senhor. Uma Igreja, que não deseja que a sua força esteja – como dizia D. Romero – no apoio dos poderosos ou da política, mas que disso se despreende com nobreza para caminhar sustentada unicamente pelos braços do Crucificado, que é a sua verdadeira força. E isto traduz-se em sinais concretos e evidentes; isto interpela-nos e impele-nos a um exame de consciência a propósito das nossas opções e prioridades no uso dos recursos, no uso das influências e posições. A pobreza é mãe e muro, porque guarda o nosso coração para que não escorregue em concessões e comprometimentos que enfraquecem a liberdade e parresia a que nos chama o Senhor.
Antes de terminar, coloquemo-nos sob o manto da Virgem, rezemos juntos para que Ela guarde o nosso coração de pastores e nos ajude a servir melhor o Corpo de seu Filho, o santo Povo fiel de Deus que caminha, vive e reza aqui na América Central.
Invoquemos a Mãe: «Ave, Maria…»
Que Jesus vos abençoe e a Virgem vos proteja! E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim, para que possa fazer tudo aquilo que disse. Muito obrigado!
[1] Apraz-me recordar pastores como o Arcebispo de São Salvador, D. Luis Chávez y González, e o Arcebispo de São José da Costa Rica, D. Víctor Sanabria, entre outros, que, impelidos pelo seu zelo pastoral e amor à Igreja, deram vida a este organismo eclesial.
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