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EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
REDEMPTIONIS DONUM
DE SUA SANTIDADE O PAPA
JOÃO PAULO II
AOS RELIGIOSOS E ÀS RELIGIOSAS
SOBRE A SUA CONSAGRAÇÃO
À LUZ DO MISTÉRIO DA REDENÇÃO

 

Caríssimos Irmãos e Irmãs em Cristo Jesus:

I

SAUDAÇÃO

1. O dom da Redenção, que este Ano Jubilar extraordinário põe especialmente em relevo, comporta em si mesmo um chamamento particular à conversão e à reconciliação com Deus em Jesus Cristo. Se bem que o motivo exterior deste Jubileu extraordinário seja de carácter histórico - celebra-se, efectivamente, o 1950° aniversário dos acontecimentos da Cruz e da Ressurreição - simultaneamente prevalece nele um motivo interior, conjunto à própria profundeza do mistério da Redenção. A Igreja nasceu deste mistério; e vive dele ao longo de toda a sua história. O tempo do Jubileu extraordinário tem um carácter excepcional. O chamamento à conversão e à reconciliação com Deus significa que devemos meditar mais a fundo na nossa vida e na nossa vocação cristã à luz do mistério da Redenção, a fim de as arraigar cada vez mais nele.

Se este chamamento é para todos os filhos da Igreja, ele diz-vos respeito de maneira especial a vós, Religiosos e Religiosas, que, pela consagração a Deus, mediante o voto dos conselhos evangélicos, tendeis a uma particular plenitude de vida cristã. A vossa vocação peculiar e o conjunto da vossa vida na Igreja e no mundo vão haurir o seu carácter e a sua força espiritual na própria profundidade do mistério da Redenção. Ao seguirdes Cristo pela «porta estreita ... e pelo caminho apertado», (1) vós experimentais de um modo extraordinário quanto é «abundante a Redenção que n'Ele se encontra»: copiosa apud eum redemptio. (2)

2. Por isso, quando este Ano Santo já se encaminha a passos largos para a sua conclusão, desejo dirigir-me de maneira particular a todos vós, Religiosos e Religiosas: aos que vos dedicais inteiramente à contemplação, bem como aos que vos devotais às diversas obras de apostolado. Já o fiz em numerosos lugares e em diversas circunstâncias, confirmando e prolongando o ensino do Evangelho, expresso em toda a Tradição da Igreja e especialmente visível no Magistério do recente Concílio Ecuménico, desde a Constituição dogmática Lumen Gentium até ao Decreto Perfectae Caritatis, e no espírito das orientações da Exortação Apostólica Evangelica Testificatio do meu Predecessor Paulo VI. O Código de Direito Canónico, que recentemente entrou em vigor e que pode ser considerado, de alguma maneira, o último dos Documentos conciliares, será para todos vós um auxiliar precioso e um guia seguro, facultando determinar em concreto os meios para viverdes fiel e generosamente a vossa magnífica vocação eclesial.

Saúdo-vos com afecto na qualidade de Bispo de Roma e de Sucessor de São Pedro, com o qual as vossas Comunidades permanecem unidas dum modo característico. Também desta mesma Sede Romana, como que em eco incessante, se fazem ouvir as palavras de São Paulo: desposei-vos «com um único esposo, como virgem pura oferecida a Cristo». (3) A Igreja, que é depositária, a partir do tempo dos Apóstolos, do tesouro das núpcias com o Esposo divino, olha com grande amor para todos os seus filhos e para todas as suas filhas que, pela sua mediação, com a profissão dos conselhos evangélicos firmaram uma aliança privilegiada com o Redentor do mundo.

Acolhei, pois, esta palavra do Ano Jubilar da Redenção como uma palavra de amor, dita para vós pela Igreja! Acolhei-a onde quer que vos encontreis: na clausura das Comunidades contemplativas, ou na dedicação ao multiforme serviço apostólico - nas Missões, na Pastoral, nos Hospitais ou noutros lugares análogos onde é servido o homem que sofre, nas Instituições de educação, nas Escolas ou nas Universidades, enfim, em cada uma das vossas Casas, onde perseverais «reunidos em nome de Cristo», com a convicção de que o Senhor está «no meio de vós». (4)

Que esta palavra de amor, que vos é dirigida no decorrer do Jubileu da Redenção, da parte da Igreja, seja o reflexo daqueloutra palavra de amor que o próprio Cristo dirigiu a cada um e a cada uma de vós, segredando-vos um dia aquele misterioso «segue-me», (5) no qual teve início a vossa vocação na Igreja.

II

VOCAÇÃO

«Jesus fitou-o com amor...»

3. «Jesus fitou-o com amor» (6) e disse-lhe: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois vem e segue-me». (7) Embora saibamos que estas palavras, ditas ao jovem rico, não foram acolhidas por ele, como «chamado», o seu conteúdo no entanto, merece uma atenta reflexão; elas apresentam, de facto, a estrutura interior da vocação.

«Jesus fitou-o com amor ...». Está aqui estampado o amor do Redentor: aquele amor que brota de toda a profundeza divino-humana da Redenção. Nele reflecte-se o eterno amor do Pai, que «amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que crê n'Ele não pereça, mas tenha a vida eterna». (8) O Filho, imbuído por este amor, aceitou a missão do Pai no Espírito Santo e tornou-se o Redentor do mundo. E o amor do Pai revelou-se no Filho como amor que salva. É este amor precisamente que constitui o verdadeiro preço da Redenção do homem e do mundo. Os Apóstolos de Cristo falam com profunda emoção de tal preço da Redenção: «... não fostes resgatados... a preço de coisas corruptíveis, como a prata e o ouro, mas pelo sangue precioso de Cristo, como de um cordeiro sem defeito e sem mácula», escreve São Pedro. (9) «Na verdade, fostes comprados por elevado preço», diz também São Paulo. (10)

O chamamento para seguir o caminho dos conselhos evangélicos nasce do encontro íntimo com o amor de Cristo, que é amor redentor. É com este amor, exactamente, que Cristo chama. Na estrutura da vocação, o encontro com este amor torna-se algo especificamente pessoal. Quando Cristo, «depois de vos ter fitado, vos amou», chamando cada um e cada uma de vós, amados Religiosos e Religiosas, aquele seu amor redentor foi dirigido a uma determinada pessoa, adquirindo ao mesmo tempo características esponsais: tornou-se amor de eleição. Tal amor abrange a pessoa toda, alma e corpo, seja homem ou mulher, com o seu único e irrepetível «eu» pessoal. Aquele que, doado eternamente ao Pai, «se dá» a si próprio no mistério de Redenção, eis que chama o homem, a fim de que este, por sua vez, se dê inteiramente a um serviço particular da obra da Redenção, mediante a agregação a uma Comunidade fraterna, reconhecida e aprovada pela Igreja. Não serão, porventura, um eco deste chamamento as palavras de São Paulo: «Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo ... e que vós não sois senhores de vós mesmos? Na verdade, fostes comprados por elevado preço». (11)

Sim: o amor de Cristo assenhoreou-se de cada um e de cada uma de vós, amados Religiosos e Religiosas, por aquele mesmo «preço» da Redenção. E em consequência disso, vós apercebestes-vos de que já não pertenceis a vós mesmos, mas a Ele. Esta nova consciência foi o fruto do «olhar amoroso» de Cristo no íntimo dos vossos corações. E vós correspondestes a esse olhar escolhendo Aquele que primeiro vos escolheu a cada um e a cada uma de vós, chamando-vos com a imensidade do seu amor redentor. Chamando «pelo nome», o seu chamamento faz sempre apelo à liberdade do homem. Cristo diz: «Se queres ...». A resposta a este chamamento, portanto, é uma escolha livre. Escolhestes a Jesus de Nazaré, o Redentor do mundo, ao escolherdes o caminho que Ele vos indicou.

«Se queres ser perfeito ...»

4. Este caminho também é chamado caminho da perfeição. Conversando com o jovem, Cristo diz: «Se queres ser perfeito ...»; de tal maneira que o conceito de «caminho da perfeição» tem a sua razão de ser na fonte do próprio Evangelho. Não ouvimos nós, de resto, no Sermão da Montanha: «Sede, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celeste»? (12) O chamamento do homem à perfeição foi pressentido, de alguma maneira, pelos pensadores e moralistas do mundo antigo e também sucessivamente, nas diversas épocas da história. O chamamento bíblico, porém, reveste-se de uma sua característica absolutamente original, e apresenta-se particularmente exigente, quando aponta ao homem a perfeição à semelhança do próprio Deus. (13) Sob esta forma, precisamente, o chamamento corresponde a toda a lógica interna da Revelação, segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança do próprio Deus. Por conseguinte, deve buscar a perfeição que lhe é própria na linha desta imagem e semelhança. Escreverá São Paulo na Carta aos Efésios: «Sede, pois, imitadores de Deus, como convém a filhos muito amados; caminhai na caridade a exemplo de Cristo, que nos amou e por nós se entregou a si mesmo a Deus, como oferenda e sacrifício de agradável odor». (14)

O chamamento à perfeição, portanto, pertence à própria essência da vocação cristã. E é sobre a base deste chamamento que é preciso compreender também as palavras de Cristo dirigidas ao jovem do Evangelho. Elas estão ligadas de modo especial ao mistério da Redenção do homem e do mundo. Esta, de facto, restitui a Deus a obra da Criação contaminada pelo pecado, indicando a perfeição que tem tudo o que foi criado e, de modo particular, o homem, no pensamento e na intenção do mesmo Deus. O homem, especialmente, deve ser doado e restituído a Deus, para poder ser restituído a si mesmo. Donde o eterno chamamento: «Volta para mim, pois te resgatei». (15) Assim, as palavras de Cristo: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres ...» introduzem-nos, sem dúvida, no âmbito do conselho evangélico da pobreza, que pertence à própria essência da vocação e da profissão religiosa.

Estas palavras podem ser entendidas ainda de uma maneira mais ampla e, em certo sentido, essencial. O Mestre de Nazaré convida o seu interlocutor a renunciar a um programa de vida no qual emerge, em primeiro plano, a categoria da posse, a categoria do «ter»; e, em vez disso, a aceitar um outro programa centrado no valor da pessoa humana, no «ser» pessoal, com toda a transcendência que lhe é própria.

Uma compreensão assim das palavras de Cristo constitui como que um plano de base mais amplo para o ideal da pobreza evangélica, especialmente daquela pobreza que, enquanto conselho evangélico, pertence ao conteúdo essencial das vossas núpcias místicas com o Esposo divino na Igreja. Ao lermos as palavras de Cristo à luz do princípio da superioridade do «ser» sobre o «ter» - especialmente quando este último é entendido no sentido materialista e utilitarista - nós atingimos quase as próprias bases antropológicas da vocação como resultam no Evangelho.

Na perspectiva do desenvolvimento da civilização contemporânea, está nisto uma descoberta particularmente actual. E por isso, a própria vocação ao «caminho da perfeição», tal como foi traçado pelo próprio Cristo, apresenta-se também actual. Dado que no âmbito da civilização hodierna, especialmente no contexto do mundo do bem-estar da sociedade de consumo, o homem sente profunda e dolorosamente a deficiência essencial de «ser» pessoal, que resulta para a sua humanidade da abundância do multiforme «ter», então ele passa a estar mais disposto para acolher esta verdade sobre a vocação, que foi expressa de uma vez para sempre no Evangelho. Sim, o chamamento que vós acolheis, amados Irmãos e Irmãs, quando entrais pelo caminho da profissão religiosa, toca as próprias raízes da humanidade, as raízes do destino do homem no mundo temporal. O «estado de perfeição» evangélico não vos separa destas raízes. Pelo contrário, é algo que vos permite ancorar mais seguramente naquilo por que o homem é homem, impregnando esta humanidade, entorpecida pelo pecado de diversas maneiras, com o fermento divino-humano do mistério da Redenção.

«Terás um tesouro no céu»

5. A vocação encerra em si a resposta à pergunta: para quê ser homem - e como sê-lo? Esta resposta confere à vida toda uma nova dimensão e determina o seu sentido definitivo. Este sentido emerge no horizonte do paradoxo evangélico acerca da vida que se perde quando se quer salvá-la, e que, ao contrário, se salva perdendo-a «por causa de Cristo e do Evangelho», como lemos em São Marcos. (16)

À luz destas palavras reveste-se de plena evidência o chamamento de Cristo: «vai, vende o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me». (17) Entre o termo «vai» e o sucessivo «vem e segue-me» estabelece-se uma relação íntima. Pode-se dizer que estas últimas palavras determinam a própria essência da vocação; com efeito, trata-se de seguir as pegadas de Cristo (sequi = palavra latina, de onde vem a sequela Christi). Os termos «vai ... vende ... dá-o» parecem determinar bem a condição que precede a vocação. No entanto, esta condição não é, por outro lado, algo que esteja «fora» da vocação; mas já se encontra «no interior» da mesma. O homem, efectivamente, faz a descoberta do novo sentido da própria humanidade, não apenas para «seguir» a Cristo, mas na medida em que O segue. Quando «vende o que possui» e «o dá aos pobres», é então que ele descobre que aqueles bens e aquela «vida na abundância», de que já dispunha, não constituíam o tesouro junto do qual pudesse aquietar-se: o tesouro está no seu coração, por Cristo feito capaz de «dar» aos outros, dando-se a si próprio. Rico não é aquele que possui; mas sim aquele que «dá», aquele que é capaz de dar.

Aqui neste ponto o paradoxo evangélico adquire uma expressividade particular. Torna-se um programa do ser: ser pobre, no sentido dado a este «ser» pelo Mestre de Nazaré, significa tornar-se um dispensador de bem com a própria humanidade. Isto quer dizer, igualmente, descobrir «o tesouro». Este tesouro é indestrutível. Conjuntamente ao homem ele prolonga-se na dimensão da eternidade, pertence à escatologia divina do mesmo homem. Mediante este tesouro o homem passa a ter o seu futuro definitivo em Deus. Cristo disse: «terás um tesouro no céu». E este tesouro não é «um prémio» somente, depois da morte, pelas boas obras praticadas a exemplo do divino Mestre; mas é sobretudo o completamento escatológico daquilo que se escondia por detrás dessas boas obras, já aqui na terra, no «tesouro» interior do coração. O próprio Cristo, aliás, no Sermão da Montanha, (18) ao exortar a angariar tesouros no céu, acrescentava: «onde está o teu tesouro, ai estará também o teu coração». (19) Estas palavras indicam o carácter escatológico da vocação cristã e, mais ainda, o carácter escatológico da vocação que se realiza seguindo o caminho das núpcias espirituais com Cristo, mediante a prática dos conselhos evangélicos.

6. A estrutura desta vocação, conforme se depreende das palavras dirigidas ao jovem nos Evangelhos sinópticos, (20) configura-se mediante a descoberta do tesouro fundamental da própria humanidade, na perspectiva daqueloutro «tesouro» que o homem «terá no céu». E com esta perspectiva o tesouro substancial da própria humanidade fica associado ao facto de «ser dando-se a si próprio». O ponto de referência directo para uma vocação assim é a pessoa viva de Jesus Cristo. O chamamento ao caminho da perfeição recebe a sua configuração d'Ele e por Ele no Espírito Santo, o qual vai recordando sempre a pessoas diversas - homens e mulheres, em diferentes momentos da sua vida, mas prevalentemente na juventude - tudo o que Cristo «disse», (21) em particular aquilo que «disse» ao jovem que Lhe perguntava: Mestre, que devo eu fazer de bom, para obter a vida eterna?». (22) Mediante a resposta de Cristo, que «fitou com amor» o seu interlocutor, o fermento forte do mistério da Redenção penetra na consciência, no coração e na vontade de todo o homem que busca com verdade e sinceridade.

Deste modo, o chamamento a percorrer o caminho dos conselhos evangélicos tem sempre o seu início em Deus: «Não fostes vós que me escolhestes a mim: fui eu que vos escolhi a vós e vos constituí para que vades e produzais fruto e para que o vosso fruto seja duradouro», (23) A vocação, na qual o homem descobre totalmente a lei evangélica da doação inscrita na própria humanidade, é também ela um dom! É um dom repleto do conteúdo mais profundo do Evangelho; um dom em que se reflecte o perfil divino-humano do mistério da Redenção do mundo. «Nisto consiste o amor: não fomos nós que amámos a Deus; mas foi Ele que nos amou e nos enviou o seu Filho em expiação dos nossos pecados». (24)

III

CONSAGRAÇÃO

A profissão religiosa é «uma expressão mais perfeita» da consagração baptismal

7. A vocação, amados Irmãos e Irmãs, levou-vos à profissão religiosa, graças à qual vós fostes consagrados a Deus, mediante o ministério da Igreja; e, ao mesmo tempo, fostes incorporados na vossa Família religiosa. Por isso, a Igreja pensa em vós, em primeiro lugar enquanto sois pessoas «consagradas»: consagradas a Deus em Jesus Cristo para lhe pertencerdes exclusivamente. Esta consagração determina o vosso lugar na ampla Comunidade da Igreja, do Povo de Deus; ao mesmo tempo, introduz na missão universal deste Povo recursos especiais de energia espiritual e sobrenatural: uma peculiar forma de vida, de testemunho e de apostolado, na fidelidade à missão do vosso Instituto, à sua identidade e ao seu património espiritual. A missão universal do Povo de Deus está radicada na missão messiânica do próprio Cristo - Profeta, Sacerdote e Rei - na qual todos participam de diversas maneiras. A forma de participação própria das pessoas «consagradas» corresponde à forma do vosso enraizamento em Cristo. E é precisamente a profissão religiosa que determina a profundidade e o vigor deste enraizamento.

A mesma profissão cria um vínculo novo do homem com Deus uno e trino, em Jesus Cristo. Este ligame tem fundamento e é acréscimo daquele vínculo original, que se estabeleceu no sacramento do Baptismo. A profissão religiosa «tem as suas raízes profundas na consagração do Baptismo e exprime-a mais perfeitamente». (25) Deste modo, ela torna-se, no seu conteúdo constitutivo, uma nova consagração: a consagração e a doação da pessoa humana a Deus, amado sobre todas as coisas. O compromisso assumido mediante os votos de pôr em prática os conselhos evangélicos de castidade, pobreza e obediência, segundo as disposições próprias das vossas Famílias religiosas, conforme se encontram determinadas nas respectivas Constituições, representa a expressão de uma consagração total a Deus e, conjuntamente, o meio que leva à sua realização. Aqui vão buscar também a própria forma o testemunho e o apostolado peculiar das pessoas consagradas. Importa, no entanto, procurar a raiz desta consagração consciente e livre e da subsequente entrega de si mesmo a Deus para Ihe pertencer no Baptismo, sacramento que nos conduz ao mistério pascal, como vértice e centro da Redenção realizada por Cristo.

Por conseguinte, quando se quer pôr totalmente em realce a realidade da profissão religiosa, é necessário referir-se às vibrantes palavras de São Paulo na Carta aos Romanos: «Ou ignorais, porventura, que todos os que fomos baptizados em Cristo Jesus, fomos imersos à semelhança da sua morte? Por meio do Baptismo fomos, pois, sepultados juntamente com Ele, à semelhança da morte, para que, assim como Jesus Cristo... assim caminhemos, nós também, numa nova vida». (26) «O nosso homem velho foi crucificado com Ele... a fim de já não sermos escravos do pecado». (27) «Do mesmo modo, vós também, considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus em Jesus Cristo». (28)

A profissão religiosa - assente na base sacramental do Baptismo, em que está radicada - é uma «nova sepultura na morte de Cristo»: nova, pela consciência e pela escolha; nova, mediante o amor e a vocação; nova, enfim, mediante a incessante «conversão». Essa «sepultura na morte» faz com que o homem «sepultado juntamente com Cristo», «caminhe como Cristo numa vida nova». Em Cristo crucificado vão encontrar o seu fundamento último quer a consagração baptismal, quer a profissão dos conselhos evangélicos; esta, na palavra do Concílio Vaticano II, «constitui uma consagração especial». É simultaneamente morte e libertação. São Paulo escreve: «considerai-vos mortos para o pecado»; ao mesmo tempo, porém, chama a esta morte «libertação da escravatura do pecado». A consagração religiosa, todavia, sobre a base sacramental do santo Baptismo, constitui sobretudo uma vida nova «para Deus em Cristo Jesus».

E eis que assim, conjuntamente à profissão dos conselhos evangélicos, dum modo muito mais amadurecido e mais cônscio é «deposto o homem velho»; e, da mesma maneira, é «revestido o homem novo, criado à imagem de Deus na justiça e na santidade verdadeira», querendo usar, uma vez mais, as palavras da Carta aos Efésios. (29)

Aliança do amor esponsal

8. Portanto, amados Irmãos e Irmãs, todos os que na Igreja inteira viveis a aliança da profissão dos conselhos evangélicos, renovai neste Ano Santo da Redenção a consciência da vossa participação especial na morte do Redentor na Cruz; a consciência daquela participação mediante a qual ressuscitastes, juntamente com Ele, e ressuscitais constantemente para uma vida nova. O Senhor fala a cada um e a cada uma de vós, como certa vez falou por meio do profeta Isaías:

«Não temas, porque eu te resgatei,
chamei-te pelo nome; tu és meu». (30)

O chamamento evangélico: «se queres ser perfeito ... segue-me» (31) guia-nos com a luz das palavras do Divino Mestre. O chamamento de Cristo chega das profundezas da Redenção e de tais profundezas atinge a alma do homem; e, em virtude de graça da Redenção, esse chamamento salvífico concretiza-se na forma real da profissão dos conselhos evangélicos na alma de quem é chamado. Nesta forma, pois, está contida a vossa resposta ao chamamento do amor redentor; e também é uma resposta de amor: amor de doação, que é a alma da consagração, isto é, da consagração da pessoa. As palavras de Isaías: «eu te resgateitu és meu» parecem sigilar exactamente este amor, que é amor total e exclusivo de uma consagração a Deus.

É deste modo que se estabelece a aliança particular do amor esponsal, na qual parecem repercutir, num eco incessante, as palavras relativas a Israel, que o Senhor «escolheu ... para sua possessão», (32) Em cada pessoa consagrada, de facto, é escolhido o «Israel» da nova e eterna Aliança. É todo o Povo messiânico, a Igreja inteira, que é eleita em todas e cada uma das pessoas que o Senhor escolhe no meio deste Povo: em cada pessoa que se consagra por todos a Deus, como propriedade exclusiva. Efectivamente, se é verdade que nenhum homem, nem sequer o mais santo, pode repetir as palavras de Cristo: «eu consagro-me a mim mesmo por eles», (33) entretanto, atendendo ao poder redentor próprio destas mesmas palavras, ao oferecer-se a Deus como propriedade exclusiva, mediante o amor de doação, cada um pode achar-se, por meio da fé, abrangido pelo alcance de tais palavras.

Porventura, não nos chamam a atenção para isto as palavras do Apóstolo na Carta aos Romanos, que nós repetimos e meditamos com tanta frequência: «Exorto-vos, pois, irmãos, pela misericórdia de Deus, a oferecer os vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus; este é o culto racional que lhe deveis prestar»? (34) Nestas palavras repercute-se um certo eco longínquo d'Aquele que, vindo ao mundo e fazendo-se homem, disse ao Pai: «... Formastes-me um corpo... Eis-me aqui... para fazer, ó Deus, a tua vontade». (35)

Rememoramos, por conseguinte — neste contexto particular do Ano do Jubileu da Redenção — o mistério do corpo e da alma de Cristo, como sujeito integral do amor redentor e esponsal: esponsal, porque redentor. Por amor ofereceu-se a si mesmo; por amor, ainda, deu o seu corpo «pelos pecados do mundo». Ao mergulhardes, mediante a consagração dos votos religiosos, no mistério pascal do Redentor, vós, com o amor de uma doação total, manifestais o desejo de que as vossas almas e os vossos corpos sejam compenetrados pelo espírito de sacrifício, daquele modo que São Paulo vos convida a fazê-lo, com as palavras da Carta aos Romanos, que acabamos de citar: «oferecei os vossos corpos como hóstia». (36) Desta maneira, imprime-se na profissão religiosa a semelhança com aquele amor que no Coração de Cristo é redentor e, conjuntamente, esponsal. E um amor assim deve brotar em cada um de vós, amados Irmãos e Irmãs, da própria fonte daquela consagração particular que — assente na base sacramental do santo Baptismo — é o início da vossa vida nova em Cristo e na Igreja: é o início da nova criação.

Que se aprofunde em cada um e cada uma de vós, juntamente com este amor, a alegria de pertencerdes exclusivamente a Deus, de serdes uma herança particular da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo. Procurai repetir, de vez em quando, com o Salmista as palavras inspiradas:

«Quem, fora de vós, há para mim no céu?
Nem na terra outra coisa desejo.
Desfalece a minha carne e o meu coração,
mas a rocha do meu coração e a minha herança
é Deus para sempre». (37)

Ou então estas outras:

«Digo a Deus: Senhor o meu bem sois vós;
nenhum outro fora de vós ...
O Senhor é a porção da minha herança e o meu cálice:
vós sois o que tendes na mão a minha sorte». (38)

Que a consciência de pertencerdes ao próprio Deus em Jesus Cristo, Redentor do mundo e Esposo da Igreja, marque sempre os vossos corações, (39) todos os vossos pensamentos, palavras e obras, com o sinal distintivo da esposa bíblica. Este conhecimento de Cristo, ardente e profundo, como vós sabeis, exercita-se e aprofunda-se cada dia mais, por meio da vida de oração pessoal, comunitária e litúrgica, própria de cada uma das vossas Famílias religiosas. Também nisto, e sobretudo nisto, os Religiosos e as Religiosas que se dedicam essencialmente à contemplação constituem para os seus irmãos e irmãs que se entregam às obras de apostolado, uma ajuda válida e um apoio estimulante. Que esta consciência de pertencer a Cristo abra os vossos corações, pensamentos e obras, com a chave do mistério da Redenção, a todos os sofrimentos, a todas as necessidades e a todas as esperanças dos homens e do mundo, no meio dos quais a vossa consagração evangélica foi enxertada, como um sinal particular da presença de Deus «para o qual todos vivem», (40) abrangidos pelas dimensões invisíveis do seu Reino.

A palavra «segue-me», dita por Cristo, quando «fitou e amou» cada um e cada uma de vós, amados Irmãos e Irmãs, tem este significado também: participa, da maneira mais completa e mais radical possível, na formação daquela «nova criatura» (41) que deve resultar da redenção do mundo, mediante o poder do Espírito de Verdade, que opera pela abundância do mistério pascal de Cristo.

IV

CONSELHOS EVANGÉLICOS

9. Mediante a profissão abre-se diante de cada um e de cada uma de vós o caminho dos conselhos evangélicos. Há no Evangelho muitas recomendações que excedem a medida do mandamento, indicando não apenas o que é «necessário», mas aquilo que é «melhor». Assim, por exemplo: a exortação a não julgar, (42) a emprestar «sem nada esperar em troca», (43) a satisfazer todas as exigências e desejos do próximo, (44) a convidar para a própria mesa os pobres, (45) a perdoar sempre (46) e muitas outras semelhantes. O facto de se ter concentrado nos três pontos da castidade, pobreza e obediência a profissão dos conselhos evangélicos, seguindo a Tradição, é um costume que parece pôr em relevo, de maneira suficientemente clara, a importância dos mesmos, como elementos-chave de toda a economia da Salvação, como elementos que, em certo sentido, a «resumem». Tudo aquilo que no Evangelho é conselho entra, indirectamente, no programa daquele caminho para o qual Cristo chama, quando diz: «segue-me». Mas a castidade, a pobreza e a obediência dão a este caminho uma característica cristocêntrica particular e imprimem nele um sinal específico da economia da Redenção.

É essencial para esta «economia» a transformação de todo o cosmos através do coração do homem, a partir de dentro: «A criação atende ansiosamente a revelação dos filhos de Deus ... na esperança de que as próprias criaturas serão libertadas da escravatura da corrupção, para participar na gloriosa liberdade dos filhos de Deus». (47) Tal transformação vai de par com o amor que o chamamento de Cristo difunde no coração do homem, com aquele amor que constitui a própria substância da consagração; ou seja, daquele acto pelo qual o homem ou a mulher se devotam a Deus na profissão religiosa, sobre o fundamento da consagração sacramental do Baptismo. Nós podemos descobrir as bases da economia da Redenção lendo as palavras da primeira Carta de São João: «Não ameis o mundo nem as coisas do mundo. Se alguém ama o mundo, não está nele o amor do Pai. Porque todas as coisas do mundo — a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida — não provêm do Pai, mas do mundo. Ora o mundo passa e também a sua concupiscência; mas quem faz a vontade de Deus permanece eternamente». (48)

A profissão religiosa põe no coração de cada um e de cada uma de vós, amados Irmãos e Irmãs, o amor do Pai; aquele amor que está no coração de Jesus Cristo, Redentor do mundo. É um amor que abrange o mundo e tudo aquilo que nele provém do Pai; e é o mesmo amor que tende a debelar no mundo tudo aquilo que não provém do Pai. Ele tende, pois, a vencer a tríplice concupiscência. «A concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida» encontram-se latentes no íntimo do homem, como herança do pecado original, em consequência do qual a relação com o mundo, criado por Deus e dado ao homem para que ele o submeta, (49) veio a encontrar-se deformada, de diversas maneiras, no coração humano. Os conselhos evangélicos de castidade, pobreza e obediência constituem, na economia da Redenção, os meios mais radicais para transformar no coração do homem essa relação com «o mundo»: com o mundo exterior e com o próprio «eu» que, em certo sentido, é a parte central «do mundo» no significado bíblico, na medida em que nele tem a sua origem aquilo que «não provém do Pai».

No contexto das frases acabadas de citar da primeira Carta de São João, não é difícil advertir a importância fundamental dos três conselhos evangélicos em toda a economia da Redenção. Com efeito, a castidade evangélica ajuda-nos a transformar na nossa vida interior tudo o que tem a sua fonte na concupiscência da carne; a pobreza evangélica, o que tem a sua origem na concupiscência dos olhos; e, por fim, a obediência evangélica permite-nos transformar, de modo radical, aquilo que no coração humano procede da soberba da vida. É de propósito que falamos aqui da superação como de uma transformação, porque toda a economia da Redenção se enquadra na moldura daquelas palavras dirigidas por Cristo ao Pai na Oração sacerdotal: «Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do mal». (50) Os conselhos evangélicos na sua finalidade essencial servem para o «renovamento da criação»: «O mundo», graças a eles, deve ser submetido ao homem e a ele restituído, de maneira a fazer com que o mesmo homem seja perfeitamente restituído a Deus.

Participação no aniquilamento de Cristo

10. A finalidade intrínseca dos conselhos evangélicos conduz ainda à descoberta de outros aspectos, que põem em relevo a sua relação íntima com a economia da Redenção. Como é sabido, esta tem o seu ponto culminante no mistério pascal de Jesus Cristo, no qual se conjungem o aniquilamento mediante a morte e o nascimento para uma vida nova mediante a ressurreição. A prática dos conselhos evangélicos comporta em si mesma um profundo reflexo desta dualidade pascal: (51) o aniquilamento inevitável daquilo que em cada um de nós é o pecado com a sua herança, e a possibilidade de renascer cada dia para um bem mais profundo, escondido na alma humana. Este bem manifesta-se sob a acção da graça, em relação à qual a práctica da castidade, da pobreza e da obediência torna particularmente sensível a alma do homem. Toda a economia da Redenção se realiza precisamente mediante esta sensibilidade à acção misteriosa do Espírito Santo, obreiro directo de toda a santidade. É nesta linha que a profissão dos conselhos evangélicos abre em cada um e em cada uma de vós, amados Irmãos e Irmãs, um espaço amplo para a «nova criatura», (52) que emerge no vosso «eu» humano exactamente da economia da Redenção; e, através deste «eu» humano, também nas dimensões interpessoais e sociais. Emerge, portanto, ao mesmo tempo na humanidade, como parte do mundo criado por Deus: daquele mundo que o Pai amou «de novo» no Filho eterno, Redentor do mundo.

Deste Filho diz São Paulo que «subsistindo na natureza de Deus... despojou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens». (53) A característica do aniquilamento contida na prática dos conselhos evangélicos, portanto, é uma característica completamente cristocêntrica. E por isso o Mestre de Nazaré também indica explicitamente a Cruz como condição para seguir os seus passos. Aquele que alguma vez disse a cada um e a cada uma de vós «segue-me», disse-vos também: «Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me» ( = caminhe pelas minhas pegadas). (54) E dizia isto a todos os seus ouvintes, não apenas aos discípulos. A lei da renúncia, portanto, pertence à própria essência da vocação cristã. Mas pertence de modo especial à vocação ligada à profissão dos conselhos evangélicos. Terão algo a dizer àqueles que se encontram no caminho desta vocação, com uma linguagem compreensível, também aquelas difíceis expressões que podemos ler na Carta aos Filipenses: por Ele «renunciei a todas as coisas e considero-as como lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado unido a Ele». (55)

Impõe-se, portanto, renúncia - reflexo do mistério do Calvário - para alguém «se encontrar» mais plenamente em Cristo crucificado e ressuscitado; renúncia, para reconhecer n'Ele totalmente o mistério da própria humanidade e confirmá-lo, fazendo a caminhada daquele processo admirável de que fala o mesmo Apóstolo numa outra passagem: «... ainda que o homem exterior se vá desfazendo em nós, o nosso homem interior vai-se renovando de dia para dia». (56) Deste modo, a economia da Redenção transfere o poder do mistério pascal para o terreno da humanidade, dócil ao chamamento de Cristo à vida de castidade, de pobreza e de obediência, ou seja, à vida segundo os conselhos evangélicos.

V

CASTIDADE - POBREZA - OBEDIÊNCIA

Castidade

11. O aspecto pascal desse chamamento pode ser reconhecido, em relação a cada um dos conselhos, sob diversos pontos de vista.

Assim, é segundo a medida da economia da Redenção que se tem de avaliar e praticar aquela castidade, que cada um e cada uma de vós prometeu pelo voto, juntamente com a pobreza e com a obediência. Nisso está contida a resposta às conhecidas palavras de Cristo, que são ao mesmo tempo um apelo: «Há eunucos, que tais se fazem a si mesmos, por amor do Reino dos céus. Quem for capaz de compreender, compreenda». (57) Anteriormente Cristo havia frisado bem: «Nem todos compreendem esta doutrina; mas só aqueles aos quais foi concedido». (58) Estas últimas palavras põem claramente em evidência que este apelo é um conselho. O Apóstolo São Paulo também dedicou a este ponto uma apropriada reflexão na primeira Carta aos Coríntios. (59)

Ora este conselho é dirigido de modo especial ao amor do coração humano. Ele põe em relevo sobretudo o carácter esponsal deste amor; ao passo que a pobreza e mais ainda a obediência parecem realçar primariamente o aspecto do amor redentor contido na consagração religiosa. Trata-se aqui, como é sabido, da castidade no sentido de «fazer-se eunuco por amor do Reino dos céus»; ou seja, trata-se da virgindade como expressão do amor esponsal pelo próprio Redentor. Neste sentido, o Apóstolo ensina que «procede bem» quem escolhe o matrimónio; mas «procede melhor» quem opta pela virgindade. (60) «Quem não é casado é todo solicitude pelas coisas do Senhor, procura agradar ao Senhor»; (61) e «a mulher que não é casada, bem como a virgem, anda solícita pelas coisas do Senhor, a fim de ser santa de corpo e de espírito». (62)

Não está aqui incluído — nem nas palavras de Cristo nem nas de São Paulo — nenhum menosprezo do matrimónio. O conselho evangélico da castidade é só uma indicação daquela particular possibilidade que constitui o amor esponsal do próprio Cristo, de Jesus «Senhor», para o coração humano, quer do homem quer da mulher. O «fazer-se eunuco por causa do Reino dos céus» não é, efectivamente, apenas uma renúncia livre ao matrimónio e à vida de família, mas é uma escolha carismática de Cristo como Esposo exclusivo. Esta escolha não só permite «preocupar-se» unicamente com as coisas do Senhor, mas — feita «por causa do Reino dos céus» — aproxima este Reino escatológico de Deus da vida de todos os homens, nas condições da temporalidade, e torna-o presente, de alguma maneira, no meio do mundo.

As pessoas consagradas realizam, mediante isso, a finalidade interior de toda a economia da Redenção. Esta finalidade, de facto, exprime-se no tornar próximo o Reino de Deus com a sua dimensão definitiva, escatológica. Pelo voto de castidade, as pessoas consagradas participam na economia da Redenção, por um lado, mediante a livre renúncia às alegrias temporais da vida matrimonial e familiar; e, por outro lado, precisamente pelo facto de se fazerem eunucos por causa do Reino dos céus», levam para o meio do mundo que passa o anúncio da ressurreição futura (63) e da vida eterna: da vida em união com o próprio Deus mediante a visão beatífica e o amor que compreende em si e penetra intimamente todos os outros amores do coração humano.

Pobreza

12. Em matéria de pobreza são muito expressivas as palavras da segunda Carta aos Coríntios, que constituem uma síntese precisa de tudo aquilo que lemos no Evangelho sobre este mesmo tema: «Conheceis muito bem a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, fez-se pobre por vosso amor, a fim de enriquecer-vos com a sua pobreza». (64) Segundo estas palavras, a pobreza entra na estrutura interna da própria graça redentora de Jesus Cristo. Sem a pobreza não é possível compreender o mistério da doação da divindade ao homem, doação que se realizou precisamente em Jesus Cristo. É também por isso que ela se encontra mesmo ao centro do Evangelho, no princípio da mensagem das oito Bem-aventuranças: «Bem-aventurados os pobres em espírito». (65) A pobreza evangélica abre diante do olhar da alma humana a perspectiva de todo o mistério «oculto desde todos os séculos em Deus». (66) Só aqueles que são «pobres» desta maneira é que são também interiormente capazes de compreender a pobreza d'Aquele que é infinitamente rico. A pobreza de Cristo esconde em si essa riqueza infinita de Deus; ou melhor, é uma expressão infalível dessa riqueza. Com efeito, uma riqueza assim, como é a própria Divinidade, não poderia ter sido exprimida adequadamente em nenhum bem criado. Ela pode ser exprimida somente na pobreza. Por isso, pode ser compreendida de modo exacto somente pelos pobres, pelos pobres em espírito. Cristo, homem-Deus, é o primeiro destes pobres: Aquele que, «sendo rico, se fez pobre», não é apenas o Mestre, mas é também o porta-voz e o garante daquela pobreza salvífica, que corresponde à infinita riqueza de Deus e ao poder inesgotável da sua graça.

Por conseguinte, também é verdade — como escreve o Apóstolo — que «mediante a sua pobreza nos tornamos ricos». É o Mestre e o porta-voz da pobreza Quem nos enriquece. Por este motivo exactamente, Ele dizia ao jovem nos Evangelhos sinópticos: «vende o que tens e dá-o ... e terás um tesouro no céu». (67) Há nestas palavras um chamamento para enriquecer os outros por meio da própria pobreza; mas no mais íntimo deste chamamento encontra-se escondido o testemunho da riqueza infinita de Deus que, transferida para a alma humana, pelo mistério da graça, cria no mesmo homem, precisamente mediante a pobreza, uma fonte para enriquecer os outros, que não se pode comparar com quaisquer recursos de ordem material: é um manancial para beneficiar os outros à semelhança do próprio Deus. Esta largueza em dar realiza-se no âmbito do mistério de Cristo, que «nos tornou ricos por meio da sua pobreza». Sabemos como este processo de enriquecimento se apresenta nas páginas do Evangelho; ele tem o seu ponto culminante no acontecimento pascal: Cristo, o mais pobre de todos os pobres, na sua morte de Cruz, é ao mesmo tempo Aquele que nos enriquece infinitamente com a plenitude da vida nova, mediante a Ressurreição.

Amados Irmãos e Irmãs, pobres em espírito pela profissão evangélica, adoptai em toda a vossa vida este modelo salvífico da pobreza de Cristo! Procurai, dia a dia, um amadurecimento cada vez maior na vossa condição de pobres! Procurai, acima de tudo, «o reino de Deus e a sua justiça», e todas as outras coisas «vos serão dadas por acréscimo». (68) Que em vós e por meio de vós se realize a bem-aventurança evangélica que está reservada aos pobres, (69) aos pobres em espírito! (70)

Obediência

13. Cristo, «subsistindo na natureza de Deus, não julgou o ser igual a Deus um bem a que não devesse nunca renunciar; mas despojou-se a si mesmo, tomando a natureza de servo e tornando-se semelhante aos homens; e, reconhecido como homem por todo o seu exterior, humilhou-se, fazendo-se obediente até à morte e à morte de cruz». (71)

Tocamos aqui, por estas palavras da Carta de São Paulo aos Filipenses, a própria essência da Redenção. Nesta realidade está inscrita, primária e constitutivamente, a obediência de Cristo. Confirmam este dado também aqueloutras palavras do mesmo Apóstolo, que encontramos desta vez na Carta aos Romanos: «Assim como pela desobediência de um só homem todos foram constituídos pecadores, assim também, pela obediência de um só todos serão constituídos justos». (72)

O conselho evangélico da obediência é o chamamento que promana desta obediência de Cristo «até à morte». Os que acolhem tal chamamento, expresso pela palavra «segue-me», decidem-se — como diz o Concilio Vaticano II — a seguir Cristo, «que redimiu e santificou os homens pela sua obediência até à morte de Cruz». (73) Ao porem em prática o conselho evangélico da obediência, eles atingem a essência profunda de toda a economia da Redenção. Ao cumprirem este conselho, demonstram o desejo de obter uma participação especial na obediência daquele «um só», por cuja obediência «todos serão constituídos justos».

Pode-se dizer, portanto, que aqueles que decidem viver segundo o conselho da obediência se colocam, de uma maneira singular, entre o mistério do pecado (74) e o mistério da justificação e da graça salvífica. Passam a estar nessa «situação» com todo o estrato pecaminoso subjacente na própria natureza humana, com toda a herança da «soberba da vida» e com todas as tendências egoístas para dominar e para não servir; e decidem-se, exactamente mediante o voto de obediência, a transformar-se à semelhança de Cristo, que «redimiu e santificou os homens pela sua obediência». No conselho da obediência desejam encontrar o próprio papel na obra da Redenção de Cristo e o próprio caminho de santificação.

Foi este o caminho que Cristo traçou no Evangelho, ao falar muitas vezes do cumprimento da vontade de Deus e da busca incessante da mesma. «O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou a realizar a sua obra». (75) «Porque eu não busco a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou». (76) «Aquele que me enviou está comigo; e não me deixou só, porque eu faço sempre o que é do seu agrado». (77) «Porque desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou». (78) Este cumprimento constante da vontade do Pai faz-nos pensar também naquela confissão messiânica do Salmista da Antiga Aliança: «Num livro está escrito de mim: cumprir a vossa vontade; meu Deus, isto eu quero e a vossa lei tenho-a fixa no íntimo do meu coração». (79)

Esta obediência do Filho — repassada de alegria — atinge o seu auge perante a Paixão e a Cruz: «Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice; não seja, porém, a minha vontade a fazer-se, mas a tua». (80) Desde a oração no Getsémani por diante, a disponibilidade de Cristo para fazer a vontade do Pai foi sendo plenamente actuada, até ao extremo limite do sofrimento; e traduz-se naquela obediência «até à morte e morte de Cruz», de que fala São Paulo.

As pessoas consagradas, com o voto de obediência decidem-se a imitar com humildade a obediência do Redentor de um modo especial. Com efeito, se bem que a submissão à vontade de Deus e a obediência à sua lei sejam para todos os estados condição para levar vida cristã, contudo, no «estado religioso», no «estado de perfeição», o voto de obediência cria no coração de cada um e de cada uma de vós, amados Irmãos e Irmãs, o dever de uma referência especial a Cristo «obediente até a morte». E uma vez que esta obediência de Cristo constitui o núcleo essencial da obra da Redenção, como resulta das palavras do Apóstolo acima citadas, também na observância do conselho evangélico da obediência se há-de vislumbrar um momento particular daquela «economia da Redenção» que impregna totalmente a vossa vocação na Igreja.

Daqui deriva aquela «disponibilidade total ao Espírito Santo», que age primeiro que tudo na Igreja, como se exprime o meu Predecessor Paulo VI na Exortação Apostólica Evangelica Testificatio; (81) e como, aliás, estará bem claro nas Constituições dos vossos Institutos. Daqui dimana também aquela religiosa submissão que, com espírito de fé, as pessoas consagradas hão-de demonstrar para com os próprios Superiores legítimos, que ocupam o lugar de Deus. (82) Na Carta aos Hebreus encontramos, acerca deste ponto, uma indicação muito significativa: «Sede obedientes e submissos aos vossos superiores, pois eles velam pelas vossas almas, pelas quais terão de dar contas». E o Autor da Carta acrescenta: Obedecei, para que eles façam «isto com alegria e não gemendo, coisa que não redundaria em vossa utilidade». (83)

Os Superiores, por seu turno, recordando-se de que têm o dever de excercer com espírito de serviço o múnus que lhes foi conferido, mediante o ministério da Igreja, mostrem-se sempre disponíveis para ouvir os próprios irmãos, a fim de poderem discernir melhor aquilo que o Senhor pede a cada um, salvaguardada sempre a autoridade que lhes compete para decidir e mandar o que julgarem oportuno.

A par com a submissão-obediência, concebida deste modo, anda a atitude de serviço, que informará toda a vossa vida, seguindo o exemplo do Filho do homem, o qual «não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos». (84) E a sua Mãe, no momento decisivo da Anunciação-Encarnação, penetrando desde o início em toda a economia salvífica da Redenção, disse: «Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra». (85)

Recordai ainda, amados Irmãos e Irmãs, que a obediência à qual vos comprometestes, consagrando-vos a Deus sem reservas, mediante a profissão dos conselhos evangélicos, constitui uma particular expressão de liberdade interior, assim como a expressão definitiva da liberdade de Cristo foi a sua obediência «até à morte»: «eu dou a minha vida, para retomá-la depois. Ninguém ma pode tirar, mas sou eu que a dou por mim mesmo». (86)

VI

AMOR À IGREJA

Testemunho

14. No Ano Jubilar da Redenção a Igreja toda deseja renovar o seu amor a Cristo, Redentor do homem e do mundo, seu Senhor e ao mesmo tempo seu Esposo divino. E por isso, neste Ano Santo, ela tem os olhos postos em vós, com singular atenção, amados Irmãos e Irmãs, pois, como pessoas consagradas, nela ocupais um lugar especial: quer na Comunidade universal do Povo de Deus, quer em cada uma das Comunidades locais. Ao desejar que, mediante a graça do Jubileu extraordinário se renove também o vosso amor por Cristo, a Igreja ao mesmo tempo está plenamente cônscia de que este amor constitui um bem especial de todo o Povo de Deus. Sim, a Igreja tem consciência de que, no amor que Cristo recebe da parte das pessoas consagradas, o amor de todo o Corpo se dirige de uma maneira especial e excepcional ao Esposo, que ao mesmo tempo é a Cabeça deste Corpo.

Por isso, a Igreja, amados Irmãos e Irmãs, exprime-vos a sua gratidão pela consagração e pela profissão dos conselhos evangélicos, que são um particular testemunho de amor. Ao mesmo tempo ela reconfirma a sua grande confiança em vós, que escolhestes um estado de vida que é um dom especial de Deus à mesma Igreja. Esta conta com a vossa colaboração total e generosa, para que, enquanto fiéis administradores de um dom tão precioso, vós «sintais com a Igreja» e sempre colaboreis com ela, em conformidade com os ensinamentos e com as directrizes do Magistério de Pedro e dos Pastores em comunhão com ele, cultivando, a nível pessoal e comunitário, uma renovada consciência eclesial. Simultaneamente, a Igreja reza por vós, a fim de que o vosso testemunho de amor jamais esmoreça; (87) e pede-vos que acolhais com este espírito a presente mensagem do Ano Jubilar da Redenção.

O Apóstolo, na sua Carta aos Filipenses, orava precisamente neste sentido, assim: «Que a vossa caridade cresça, ainda mais e mais, no conhecimento perfeito e em todo o género de discrição, a fim de que possais discernir o que é melhor, e assim vos tornardes puros e irrepreensíveis para o dia de Cristo, repletos do fruto de justiça...». (88)

Pela Redenção operada por Cristo, «o amor de Deus encontra-se largamente difundido nos nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado». (89) Eu peço incessantemente ao Espírito Santo que conceda a cada um e a cada uma de vós dar, «segundo o seu dom particular», (90) um testemunho excelente desse amor. Que prevaleça em vós, de maneira digna da vossa vocação «a lei do Espírito que dá a vida em Jesus Cristo ...», aquela lei que nos libertou «da lei ... da morte». (91) Procurai viver, portanto, desta vida nova, segundo a medida da vossa consagração e também segundo a medida dos diversos dons de Deus, que correspondem à vocação de cada uma das Famílias religiosas.

A profissão dos conselhos evangélicos indica a cada um e a cada uma de vós a maneira como podeis «fazer morrer, com o auxílio do Espírito Santo», (92) tudo aquilo que é contrário à vida e que serve ao pecado e à morte, tudo aquilo que se opõe ao verdadeiro amor de Deus e dos homens. O mundo tem necessidade da genuína «contradição» da consagração religiosa, que seja para ele um permanente fermento de renovação salvífica. «Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, aceito ao mesmo Deus e perfeito». (93)

Passado o período especial de experiência e de actualização, previsto pelo Motu-proprio Ecclesiae Sanctae, os vossos Institutos receberam há pouco, ou estarão para receber, a aprovação da parte da Igreja das Constituições renovadas. Que este dom da Igreja vos estimule a conhecê-las e, sobretudo, a vivê-las com fidelidade e com generosidade, tendo presente que a obediência é uma manifestação não equívoca do amor.

É precisamente deste testemunho de amor que o mundo de hoje e a humanidade têm necessidade. Sim, têm necessidade do testemunho da Redenção, tal como ela está impressa na profissão dos conselhos evangélicos. Estes conselhos, cada um segundo a maneira que lhe é peculiar e todos conjuntamente na sua conexão íntima, «dão testemunho» da Redenção que, pelo poder da Cruz e da Ressurreição de Cristo, encaminha o mundo e a humanidade no Espírito Santo para aquela definitiva realização plena, que o homem e, pelo homem, toda a criação encontram em Deus, e somente em Deus. O vosso testemunho, portanto, é inestimável. É preciso aplicar-se, com constância, para que ele seja plenamente transparente e plenamente frutuoso no meio dos homens. Para isso poderá servir, realmente, a observância fiel das normas da Igreja que dizem respeito à manifestação também externa da vossa consagração e do vosso compromisso de pobreza. (94)

Apostolado

15. Deste testemunho de amor esponsal a Cristo, através do qual toda a verdade salvífica do Evangelho se torna particularmente visível entre os homens, nasce ainda, amados Irmãos e Irmãs, como algo próprio da vossa vocação, a participação no apostolado da Igreja, na sua missão universal, que se realiza simultaneamente no seio de todas nas nações, de muitas maneiras diversas e mediante a multiplicidade dos dons concedidos por Deus. A vossa missão específica procede harmoniosamente de par com a missão dos Apóstolos, que o Senhor enviou «por todo o mundo» para «ensinar todas as gentes»; (95) e, mais ainda, está unida a esta missão que incumbe à ordem hierárquica. No apostolado que as pessoas consagradas desenvolvem, o seu amor esponsal por Cristo torna-se, de modo quase orgânico, amor pela Igreja enquanto Corpo de Cristo, pela Igreja como Povo de Deus, pela Igreja que é também Esposa e Mãe.

Seria difícil descrever e até mesmo simplesmente enumerar as múltiplas maneiras diferentes pelas quais as pessoas consagradas põem em prática, mediante o apostolado, o seu amor para com a Igreja. Esse apostolado nasceu sempre daquele dom particular dos vossos Fundadores que, recebido de Deus e aprovado pela Igreja, se tornou um carisma para a inteira Comunidade. Tal dom divino corresponde às diversas necessidades da Igreja e do mundo, em cada época da história; e, seguidamente, prolonga-se e consolida-se na vida das comunidades religiosas como um dos elementos perduráveis da vida e do apostolado da mesma Igreja.

Em cada um destes elementos, em todas as suas expressões — quer na da contemplação fecunda para o apostolado, quer na da actividade directamente apostólica — acompanha-vos a bênção constante da Igreja; e, simultaneamente, a sua solicitude pastoral e materna, pelo que respeita à identidade da vossa vida espiritual e em ordem ao acerto da vossa actuação, no seio da grande Comunidade universal das vocações e dos carismas de todo o Povo de Deus. Tanto por cada um dos Institutos, tomados separadamente como pela sua integração orgânica, é no contexto de toda a missão da Igreja que é sempre posta particularmente em realce aquela economia da Redenção, de cuja marca profunda cada um e cada uma de vós, amados Irmãos e Irmãs, é portador em si mesmo, em virtude da própria consagração e da profissão dos conselhos evangélicos.

E por conseguinte, embora sejam sumamente importantes as múltiplas obras de apostolado a que vos dedicais, todavia a obra de apostolado fundamental continua sempre a ser aquilo que vós sois (e ao mesmo tempo quem vós sois) na Igreja. Podem repetir-se de cada um e de cada uma de vós, com especial razão, as palavras do Apóstolo: «Vós estais mortos e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus». (96) E contudo, o facto de «estardes escondidos com Cristo em Deus» permite que se vos apliquem as palavras do próprio Mestre: «Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, a fim de que vendo as vossas boas obras, glorifiquem a vosso Pai que está nos céus». (97)

Para haver esta luz, pela qual vós deveis resplandecer «diante dos homens», é importante entre vós o testemunho da caridade mútua, a que anda ligado o espírito fraterno de todos na Comunidade, uma vez que o Senhor disse: «Nisto precisamente todos reconhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros». (98)

A natureza fundamentalmente comunitária da vossa vida religiosa, alimentada pela doutrina do Evangelho, pela sagrada Liturgia e, sobretudo, pela Eucaristia, constitui um modo privilegiado para realizar esta dimensão interpessoal e social. Usando de delicadeza e tendo atenções mútuas e levando o peso uns dos outros, vós manifestais, pela vossa unidade, que Cristo vive no meio de vós. (99)

Para o vosso apostolado na Igreja é importante que sejais muito sensíveis às necessidades e aos sofrimentos do homem, que se apresentam tão claramente e de maneira tão impressionante no mundo de hoje. O Apóstolo, efectivamente, ensina: «Levai os fardos uns dos outros e desse modo cumprireis a lei de Cristo»; (100) e diz ainda que «o cumprimento perfeito da lei é a caridade». (101)

A vossa missão deve ser visível! O vínculo que a une à Igreja deve ser profundo, muito profundo. (102) Através de tudo o que fazeis e, principalmente, através daquilo que vós sois, que seja proclamada e confirmada constantemente a verdade de que «Cristo amou a Igreja e se entregou a si mesmo por ela», (103) verdade que está na base de toda a economia da Redenção. E que de Cristo, Redentor do mundo, brote também a fonte inexaurível do vosso amor pela Igreja.

VII

CONCLUSÃO

Iluminados os olhos da vossa inteligência

16. Esta Exortação que vos dirijo pela Solenidade da Anunciação do Senhor, no Ano Jubilar da Redenção, desejaria ser uma expressão do amor que a Igreja nutre pelos Religiosos e pelas Religiosas. Com efeito, vós, amados Irmãos e Irmãs, sois um bem especial da Igreja. E é um bem que se torna mais compreensível através da meditação da realidade da Redenção; e para isto, o corrente Ano Santo proporciona uma ocasião constante e um estímulo favorável. Procurai reconhecer, pois, sob esta luz, a vossa identidade e a vossa dignidade. E que o Espírito Santo — por obra da Cruz e da Ressurreição de Cristo — «ilumine os olhos da vossa inteligência, a fim de que possais saber qual é a esperança a que sois chamados, quais as riquezas da sua herança gloriosa que vos prepara entre os santos». (104)

Estes «olhos iluminados da vossa inteligência» é o que a Igreja pede sem cessar para cada um e cada uma de vós, os que já entrastes no caminho da profissão dos conselhos evangélicos. E estes «olhos assim, igualmente iluminados», é o que a Igreja, juntamente convosco, pede para muitos outros cristãos, especialmente para a juventude masculina e feminina, a fim de poderem descobrir este caminho e não terem receio de se comprometer a segui-lo, e para que — mesmo no meio das circunstâncias adversas da vida de hoje — possam ouvir o «segue-me» de Cristo. (105)

Vós deveis, realmente, aplicar-vos a este objectivo, pela vossa oração e também com o vosso testemunho daquele amor mútuo, pelo qual «Deus permanece em vós, e o seu amor é perfeito em vós». (106) Que este testemunho se torne presente em toda a parte e universalmente legível! Que o homem dos nossos tempos, cansado espiritualmente, encontre nesse testemunho apoio e esperança. Por conseguinte, servi aos vossos irmãos, com a alegria que nasce de um coração habitado por Cristo. «Que o mundo do nosso tempo ... possa receber a Boa Nova, não de evangelizadores tristes e desalentados, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie o fervor de quem já recebeu primeiro, em si mesmo, a alegria de Cristo». (107)

A Igreja, com o muito amor que tem por vós, não cessa « de dobrar os joelhos diante do Pai», (108) para que sejais «corroborados ... na vitalidade do homem interior»; (109) e para que, do mesmo modo que vós, o sejam igualmente muitos outros nossos irmãos e irmãs baptizados, especialmente jovens, a fim de poderem encontrar também eles o mesmo caminho da santidade. Ao longo da história, este caminho foi percorrido por muitas gerações que, unidas com Cristo — Redentor do mundo e Esposo das almas — deixaram atrás de si, não raro, o clarão intenso da luz de Deus, sobre o fundo cinzento e mesmo de trevas da existência humana.

Para todos vós, os que na fase actual da história da Igreja e do mundo percorreis tal caminho, vão os mais ardentes votos do Ano Jubilar da Redenção, para que «radicados e alicerçados na caridade, sejais capazes de compreender, com todos os santos, qual seja a largura, o comprimento, a altura e a profundidade do amor de Cristo e conhecer a sua caridade, que excede toda a ciência, para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus». (110)

Mensagem da Solenidade da Anunciação do Senhor

17. Na festividade da Anunciação deste Ano Santo, quero depor a presente Exortação no Coração da Virgem Imaculada. Entre todas as pessoas consagradas sem reservas a Deus, Ela é a primeira. Ela — a Virgem de Nazaré — é também a mais plenamente consagrada a Deus, consagrada da maneira mais perfeita. O seu amor esponsal atinge o ponto mais alto na maternidade divina pelo poder do Espírito Santo. Ela, que como Mãe, leva Cristo nos braços, ao mesmo tempo corresponde do modo mais perfeito ao seu chamamento: «segue-me». E segue-o — Ela, a Mãe — como seu Mestre em castidade, em pobreza e em obediência.

Quanto foi dedicada a Virgem de Nazaré, durante toda a sua vida terrena, à causa do Reino dos céus, por amor castíssimo! Quanto foi pobre na noite de Belém e se mostrou pobre no Calvário! Quanto foi obediente na altura da Anunciação e depois — aos pés da Cruz — obediente até ao ponto de consentir na morte do Filho, que se tinha feito «obediente até à morte»!

Se para a Igreja toda Maria é o primeiro modelo, com muito mais razão Ela tem de o ser para vós, pessoas e comunidades consagradas no interior da Igreja. No dia que nos traz à lembrança a abertura do Jubileu da Redenção, que se verificou no ano passado, dirijo-me a vós com a presente mensagem, para vos convidar a que reaviveis a vossa consagração religiosa segundo o modelo da consagração da própria Mãe de Deus.

Queridos Irmãos e Irmãs: «fiel é Deus que vos chamou à comunhão de seu Filho, Jesus Cristo». (111) Perseverando, pois, na fidelidade Aquele que é fiel, esforçai-vos por buscar um apoio especialíssimo em Maria. Com efeito, Ela foi chamada por Deus à comunhão mais perfeita possível com o seu Filho. Que seja Ela, a Virgem fiel, também para vós, a Mãe da vossa caminhada evangélica! Que Ela vos ajude a experimentar e a mostrar diante do mundo quanto o próprio Deus é infinitamente fiel.

Ao formular estes votos, abençoo-vos de todo o coração.

Dado no Vaticano, no dia 25 de Março do Ano Jubilar da Redenção de 1984, sexto do meu Pontificado.

 

IOANNES PAULUS PP. II

 


1. Cf. Mt 7, 14.

2. Sl 130 [129], 7.

3. Cf. 2 Cor 11, 2.

4. Cf. Mt 18, 20.

5. Cf. Mt 19, 21; Mc 10, 21; Lc 18, 22.

6. Mc 10, 21.

7. Mt 19, 21.

8. Jo 3,16.

9. 1 Pdr 1, 18

10. 1 Cor 6, 20.

11. 1 Cor 6, 19-20.

12. Mt 5, 48.

13. Lc 19, 2, 11, 44

14. Ef 5, 1-2.

15. Is 44, 22.

16. Mc 8, 35; cf. Mt 10 39; Lc 9, 24.

17. Mt 19, 21.

18. Cf. Mt 6, 19-20.

19. Mt 6, 21.

20. Cf. Mt 19, 21; Mc 10, 21; Lc 18, 22.

21. Cf. Jo 14, 26.

22. Mt 19, 16.

23. Jo 15, 16.

24. 1 Jo 4, 10.

25. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. Perfectae Caritatis, 5; cf. também o Documento da Congregação para os Religiosos e os Institutos Seculares - « Elementi essenziali dell'insegnamento della Chiesa sulla vita religiosa » (21 de Maio de 1983), nn. 5 ss.

26. Rom 6, 34.

27. Rom 6, 6.

28. Rom 6, 11.

29. Cf. Ef 4, 22-24

30. Is 43, 1.

31. Mt 19, 21.

32. Sl 135 [134], 4.

33. Jo 17, 19.

34. Rom 12,1.

35. Hebr 10, 5. 7.

36. Rom 12,1.

37. Sl 73 [72], 25-26.

38. Sl 16 [15], 2. 5.

39. Cf. Cânt 8, 6.

40. Cf. Lc 20, 38.

41. 2 Cor 5, 17.

42. Cf. Mt 7, 1.

43. Lc 6, 35.

44. Cf. Mt 5 40-42.

45. Cf. Lc 14, 13-14.

46. Cf. Mt 6, 14-15.

47. Rom 8, 19-21.

48. 1 Jo 2, 15-17: segundo o texto da antiga Vulgata, que inspirou uma longa tradição patrística e ascética.

49. Gén 1, 28.

50. Jo 17, 15.

51. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. Perfectae Caritatis, 5.

52. 2 Cor 5, 17.

53. Flp 2, 6-7.

54. Mc 8, 34; Mt 16, 24.

55. Flp 3, 8-9.

56. 2 Cor 4 ,16

57. Mt 19, 12.

58. Mt 19, 11.

59. Cf. 1 Cor 7, 28-40.

60. Cf. 1 Cor 7, 38.

61. 1 Cor 7, 32.

62. 1 Cor 7, 34.

63. Cf. Lc 20, 34-36; Mt 22, 30; Mc 12, 25.

64. 2 Cor 8, 9.

65. Mt 5, 3.

66. Ef 3, 9

67. Mt 19, 21; cf. Mc 10, 21; Lc 18, 22.

68. Mt 6. 33.

69. Lc 6, 20.

70. Mt 5, 3.

71. Flp 2, 6-8.

72. Rom 5, 19.

73. Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. Perfectae Caritatis, 1.

74. «Mysterium iniquitatis»: cf. 2 Tess 2, 7.

75. Jo 4, 34.

76. Jo 5,30.

77. Jo 8, 29.

78. Jo 6,38.

79. Sl 40 [39], 8-9, Cf. Hebr 10, 7.

80. Lc 22, 42; Cf. Mc 14, 36; Mt 26, 42.

81. Cf. Evangelica Testificatio, 6: AAS 63 (1971), p. 500.

82. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. Perfectae Caritatis, 14.

83. Hebr 13, 17.

84. Mc 10, 45

85. Lc 1, 38.

86. Jo 10, 17-18.

87. Cf. Lc 22, 32

88. Flp 1, 9-11.

89. Rom 5, 5

90. Cf. 1 Cor 7, 7.

91. Rom 8, 2.

92. Cf. Rom 8, 13.

93. Rom 12, 2.

94. Cf. C.I.C. cân. 669.

95. Cf. Mt 28, 19.

96. Col 3, 3.

97. Mt 5, 16.

98. Jo 13, 35.

99. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. Perfectae Caritatis, 15.

100. Gál 6, 2.

101. Rom 13, 10.

102. Isto mesmo é recordado explicitamente pelo Código de Direito Canónico, a propósito da actividade apostólica: cf. cân. 675, § 3.

103. Cf. Ef 5, 25.

104. Ef 1, 18.

105. Lc 5, 27.

106. 1 Jo 4, 12.

107. Paulo PP. VI, Exort Apost. Evangelii Nuntiandi, 80: AAS 68 (1976), p. 75.

108. Cf. Ef 3, 14.

109. Cf. Ef 3,16.

110. Ef 3, 17-19.

111. 1 Cor 1, 9.

 

 



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