VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE A PARIS E LISIEUX
(30 DE MAIO - 2 DE JUNHO 1980)
HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II
NA SANTA MISSA CELEBRADA
DIANTE DA BASÍLICA DE LISIEUX
Segunda-feira, 2 de Junho de 1980
1. Sinto muita felicidade em que me seja dado vir a Lisieux por ocasião da minha visita à capital da França. Estou aqui em peregrinação com todos vós, caros Irmãos e Irmãs, que viestes vós também de muitas regiões da França, até junto daquela que nós amamos tanto, a "pequena Teresa", cujo caminho para a santidade anda estreitamente ligado ao Carmo de Lisieux. Se as pessoas versadas na ascese e na mística, e as que amam os santos, tomaram o hábito de chamar ao caminho de Sor Teresa do Menino Jesus "o pequeno caminho" está completamente fora de dúvida que o Espírito de Deus, que a orientou por este caminho, o fez com a mesma generosidade com que orientou outrora a sua Patrona, a "grande Teresa" de Ávila, e com a qual guiou — e continua a guiar — tantos outros santos na Sua Igreja. Seja-Lhe pois dada glória eternamente!
A Igreja alegra-se com esta maravilhosa riqueza dos dons espirituais, tão esplêndidos e variados como o são todas as obras de Deus no universo visível e invisível. Cada um deles reflecte ao mesmo tempo o mistério interior do homem e corresponde às necessidades dos tempos, na história da Igreja e da humanidade.
É preciso dizê-lo de Santa Teresa de Lisieux que, até a uma época recente, foi com efeito a nossa santa "contemporânea". É assim que eu a vejo pessoalmente, no quadro da minha vida. Mas continua ela a ser a santa "contemporânea"? Não deixou ela de o ser para a geração que chega actualmente à maturidade na Igreja? Seria necessário perguntá-lo aos homens desta geração. Seja-me todavia permitido notar que os santos não envelhecem praticamente nunca, que não estão nunca sujeitos à "prescrição". Mantêm-se continuamente como testemunhas da juventude da Igreja. Não se tornam nunca pessoas do passado, homens e mulheres de "ontem". Pelo contrário: são sempre os homens e as mulheres do "amanhã", as pessoas do futuro evangélico do homem e da Igreja, as testemunhas "do mundo futuro".
2. "Na verdade, todos aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Vós não recebestes um espírito de escravidão, para cair de novo no temor; recebestes, pelo contrário, um espírito de adopção, pelo qual chamamos: Abba! Pai!" (Rom 8, 14-15).
Seria talvez difícil encontrar palavras mais sintéticas, e ao mesmo tempo mais impressionantes, para caracterizar o carisma particular de Teresa Martin, isto é, o que forma a dom especialíssimo do seu coração, e que se tornou, pelo seu coração, dom particular para a Igreja. O dom admirável na sua simplicidade, universal e ao mesmo tempo único. Pode dizer-se convictamente de Teresa de Lisieux que o Espírito de Deus permitiu ao seu coração revelar directamente, aos homens do nosso tempo, o mistério fundamental, a realidade do Evangelho: o facto de ter recebido realmente "um espírito de adopção, pelo qual chamamos: Abba! Pai!". O "pequeno caminho" é o caminho da "santa infância". Neste caminho, há alguma coisa de único, o génio de Santa Teresa de Lisieux. Irá ao mesmo tempo a confirmação e a renovação da verdade mais fundamental e mais universal. Que verdade da mensagem evangélica é, com efeito, mais fundamental e mais universal que esta: Deus é nosso Pai e nós somos Seus filhos?
Esta verdade, a mais universal que exista, esta realidade, foi igualmente "relida" com a fé, a esperança e o amor de Teresa de Lisieux. Foi em certo sentido redescoberta com a experiência interior do seu coração e a forma tomada para toda a sua vida, somente 24 anos da sua vida. Quando morreu aqui, no Carmo, vítima da tuberculose de que trazia havia muito os bacilos, era quase uma criança. Deixou a lembrança da criança; da santa infância. E toda a sua espiritualidade confirmou uma vez mais a verdade destas palavras do Apóstolo: "Vós não recebestes um espírito de escravidão, para cair de novo no temor; recebestes, pelo contrário, um espírito de adopção...". Sim. Teresa foi a criança. Foi a criança "confiante" até ao heroísmo, e por consequência "livre" até ao heroísmo. Mas é precisamente porque foi até ao heroísmo, que ela só conheceu o sabor interior e também o preço interior desta confiança que impede de "recair no temor"; desta confiança que, até nas obscuridades e nos sofrimentos mais profundos da alma, permite exclamar: "Abba! Pai!".
Sim, ela conheceu este sabor e este prémio. Para quem lê atentamente a sua "História de uma alma", é evidente que este sabor da confiança filial provém, como o perfume das rosas, da haste que tem também espinhos. Se, de facto, nós somos "filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, pois sofremos com Ele para sermos também glorificados com Ele" (Rom 8, 17). por isso, precisamente, que a confiança filial da pequena Teresa, Santa Teresa do Menino Jesus mas também "da Santa Face", é tão "heróica", pois provém da fervorosa comunhão nos sofrimentos de Cristo.
E quando eu vejo diante de mim todos estes doentes e enfraquecidos, penso que estão também associados, como Teresa de Lisieux, à paixão de Cristo, e que, devido à fé que têm no amor de Deus, devido ao amor que têm, a oferta espiritual deles obtém misteriosamente para a Igreja, para todos os outros membros do Corpo místico de Cristo, um suplemento de vigor. Não esqueçam nunca esta bela, frase de Santa Teresa: "No coração da Igreja minha Mãe, eu serei o amor". Peço a Deus que dê a cada um destes amigos que sofrem, que eu amo com afecta especialíssimo, o conforto e a esperança.
3. Ter confiança em Deus com Teresa de Lisieux quer dizer seguir o "pequeno caminho", por onde nos guia o Espírito de Deus: guia sempre para a grandeza em que participam os filhos e as filhas da adopção divina. Já como menino, como menino de doze anos, o Filho de Deus declarou que a sua vocação era de se ocupar das coisas de Seu Pai (cfr. Lc 2, 49). Ser criança, tornar-se como criança, quer dizer entrar no centro mesmo da maior missão a que o homem foi chamado por Cristo, missão que atravessa o coração mesmo do homem. Ela, Teresa; sabia-o perfeitamente. Esta missão vai buscar a sua origem ao amor eterno do Pai. O Filho de Deus, como homem de maneira visível e "histórica", e o Espírito Santo, de maneira invisível e "carismática"„ cumprem-na através da história da humanidade.
Quando, na altura de deixar o mundo, Cristo diz aos Apóstolos: "Ide pelo mundo inteiro e ensinai o Evangelho a todas as criaturas» (Mc 16, 15), insere-os, pela força do Seu mistério pascal, na grande corrente da Missão eterna. A partir do momento em que os deixou a fim de ir para o Pai, começa ao mesmo tempo a vir "de novo no poder do Espirito Santo" que o Pai envia em Seu nome. Mais profundamente que todas as verdades sobre a Igreja, foi esta posta em relevo na consciência da nossa geração pelo Concílio Vaticano II. Graças a isto, nós todos compreendemos melhor que a Igreja se encontra constantemente "em estado de missão a que quer dizer que toda a Igreja é missionária. E nós compreendemos igualmente melhor este mistério particular do coração de Terezinha de Lisieux, que, por meio do seu "pequeno caminho", foi chamada a participar tão plena e frutuosamente na missão mais elevada. Foi justamente esta "pequenez" que ela tanto amava a pequenez da criança, que lhe abriu de par em par toda a grandeza da Missão divina da salvação, que é a missão incessante da Igreja.
Aqui, no seu Carmo, na clausura do convento de Lisieux, Teresa sentiu-se especialmente unida a todas as missões e aos missionários da Igreja no mundo inteiro. Sentiu-se ela mesma "missionária", presente pela força e pela graça particular do Espírito de amor em todos os postos missionários, próxima de todos os missionários, homens e mulheres, no mundo. Foi proclamada pela Igreja padroeira das missões, como São Francisco Xavier que viajou incansavelmente no Extremo Oriente: sim, ela, a Terezinha de Lisieux, encerrada na clausura carmelita, aparentemente separada do mundo.
Tenho o gosto de poder vir aqui pouco depois da minha visita ao continente africano, e, diante desta admirável "missionária", de atribuir ao Pai da verdade e do amor eterno tudo o que, no poder do Filho e do Espírito Santo, é já fruto do trabalho missionário da Igreja entre os homens e os povos do continente negro. Desejaria ao mesmo tempo, se me posso assim exprimir, fazer que Teresa de Lisieux me emprestasse o olhar perspicaz da sua fé, a sua simplicidade e confiança, numa palavra a "pequenez" juvenil do seu coração, para proclamar diante de toda a Igreja quanto é abundante a messe, e para pedir como ela, para pedir ao Senhor da messe, que envie, com generosidade maior ainda, operários para a messe (cfr. Mt 9, 37-38). Que os envie apesar de todos os obstáculos e todas as dificuldades que se Lhe deparam no coração do homem, na história do homem. ,
Na África pensei muitas vezes: que fé, que energia espiritual tinham esses missionários do século passado ou da primeira metade deste, e todos esses Institutos missionários que se fundaram, para partirem sem hesitar para esses países então desconhecidos, com o fim único de tornar conhecido o Evangelho, de fazer que a Igreja nascesse! Viam nisso com motivo uma obra indispensável à salvação. Sem a audácia, sem a santidade deles, as Igrejas locais — cujo centenário acabamos de celebrar — as quais são agora dirigidas sobretudo por Bispos africanos, nunca teriam chegado a existir. Caros Irmãos e Irmãs, não percamos esse entusiasmo!
De facto, sei que vós não quereis resolver-vos a tal perda. Saúdo entre vós os antigos Bispos missionários, testemunhas do zelo de que falava. A França tem ainda muitos missionários pelo mundo, sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos, e alguns Institutos abriram-se a esse trabalho. Vejo aqui os membros do Capítulo das Missões Estrangeiras de Paris, e evoco o Beato Teófano Vénard cujo martírio no Extremo Oriente foi luz e apelo para Teresa. Penso também em todos os padres franceses que dedicam pelo menos alguns anos ao serviço das jovens Igrejas, no quadro do "Fidei donum". Hoje compreende-se aliás melhor a necessidade de uma troca fraternal entre as jovens e as velhas Igrejas, com benefício de umas e de outras. Sei por exemplo que as Obras pontifícias missionárias, ligadas Comissão episcopal das Missões no estrangeiro, não têm em vista somente despertar a ajuda material, mas formar o espírito missionário dos cristãos da França, e alegro-me com isso. Este ardor missionário não pode surgir e dar frutos senão a partir de uma maior vitalidade espiritual de irradiação da santidade.
4. "A beleza existe para nos encantar para o trabalho", escreveu Cipriano Norwid, um dos maiores poetas e pensadores que tenha dado a terra da Polónia. Foi recebido pela terra francesa — está depositado no cemitério de Montmorency...
Demos graças ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo pelos Seus santos. Demos graças por Santa Teresa de Lisieux. Demos graças pela beleza profunda, simples e pura, que se manifestou nela à Igreja e ao mundo. Esta beleza encanta. E Teresa de Lisieux tem dom particular para encantar pela beleza da sua alma. Ainda que saibamos todos que esta beleza foi difícil e cresceu no sofrimento, não deixa de alegrar com o seu encanto particular os olhos das nossas almas.
Encanta portanto esta beleza, esta flor da santidade que se desenvolveu neste solo; e o seu encanto não cessa de estimular os nossos corações a trabalharem: "A beleza existe para nos encantar para o trabalho". Para o trabalho mais importante, no qual o homem aprende a fundo o mistério da sua humanidade. Descobre nele mesmo o que significa ter recebido "um espírito de filho adoptivo", radicalmente diferente "de um espírito de escravo", e começa a bradar com todo o seu coração: "Abba! Pai!" (cfr. Rom 8, 15).
Com os frutos deste magnífico trabalho interior constrói-se a Igreja, o Reino de Deus na terra, na sua substância mais profunda e mais fundamental. E o brado "Abba! Pai!", que ressoa extensamente em todos os continentes do nosso planeta, volta também pelo seu eco à clausura carmelita silenciosa, à Lisieux, vivificando sempre de novo a lembrança de Teresinha, que, pela sua vida breve e oculta mas tão rica, pronunciou com força particular: "Abba! Pai!". Graças a ela, a Igreja inteira encontrou toda a simplicidade e todo o vigor deste brado, que tem a origem e a fonte no coração do próprio Cristo.
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