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SOLENE CELEBRAÇÃO LITÚRGICA CONCLUSIVA
DA SEMANA DE ORAÇÕES PELA UNIDADE DOS CRISTÃOS
E RITO DE BEATIFICAÇÃO DE IRMà MARIA GABRIELA SAGHEDDU

HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

Basílica de São Paulo fora dos Muros
Terça-feira, 25 de Janeiro de 1983

 

1. A celebração litúrgica da conversão de Saulo de Tarso faz-nos reviver o momento dramático do seu encontro pessoal com o Cristo Senhor, quando o intrépido discípulo de Gamaliel "cheio de zelo pelas coisas de Deus" (Act. 22, 3), tomado de sobressalto no caminho de Damasco pela inconfundível voz daquele Jesus a quem perseguia sem conhecer, se abriu logo à escuta da Sua palavra, e, no momento mesmo em que acolhia docemente a amargurada desaprovação do Mestre divino, se tornava o Seu "instrumento escolhido para levar o Seu nome perante os povos, os reis e os filhos de Israel" (Cf. Act 9, 15), como Sua "testemunha diante de todos os homens".

O elemento central de todo o acontecimento é constituído pelo facto da conversão. Destinado a evangelizar os povos "para os fazer passar das trevas à luz e da sujeição de Satanás para Deus e assim alcançarem os perdão dos pecados" (Act. 26, 18), Saulo é chamado por Cristo, antes de mais, para realizar em si mesmo uma profunda conversão.

De facto, Cristo —  que lhe aparece como "luz mais brilhante do que o sol" (Act. 26, 13) —  interpela-o no íntimo, chamando-o pelo nome, com uma palavra estritamente pessoal que não deixa espaço para equívocos ou evasões: "Saulo, Saulo, porque Me persegues? É duro para ti recalcitrar contra o aguilhão... Ergue-te e firma-te nos pés" (Act. 26, 14.16).

E Saulo, que se deixou vencer pelo Cristo, e ficou deslumbrado pela inesperada experiência d'Ele, inicia assim o seu fatigoso caminho de conversão, que durará por toda a vida, partindo com extraordinária humildade daquele "que hei-de fazer, Senhor?", e deixando-se com simplicidade ser conduzido pela mão, até a Ananias, mediante cujo ministério profético ser-lhe-á dado conhecer o desígnio de Deus.

2. Tal desígnio é sintetizado nas palavras do Senhor: "Eu mesmo lhe hei-de mostrar quanto ele deverá sofrer pelo Meu nome"(Act. 9, 16). Com este breve aceno, quase clarão na noite, Cristo levanta o véu a respeito do futuro do Apóstolo deixando-o divisar o privilegiado chamamento a participar de modo singularmente intenso no mistério da Paixão e na Cruz. Tal participação será tão plena e vital, dentro daquele Corpo Místico do qual por divina misericórdia ele se tornou membro, que Paulo poderá escrever aos Colossenses: "alegro-me nos sofrimentos suportados por vossa causa e completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo Seu Corpo, que é a Igreja" (Col. 1, 24).

A partir daquele momento o antigo perseguidor tornar-se-á por excelência o evangelizador de Cristo crucificado, da "loucura" da cruz, do mistério do pecado e da redenção no Sangue de Cristo, da Sua morte e ressurreição, a ponto de poder dizer: "Estou crucificado com Cristo! Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim"(Gál. 2,20).

Há ainda um elemento no episódio da conversão de Saulo que sou obrigado a ressaltar: é a referência à oração, base e fundamento de toda a preparação e de toda a acção apostólica. Para consentir que Ananias identifique Saulo, o convertido, o Senhor oferece-lhe um inconfundível sinal de reconhecimento: Ananias o encontrará em oração. "Vai à casa de Judas e pergunta por um homem chamado Saulo de Tarso, que está a rezar neste momento"(Act. 9, 11).

3. É grande motivo de alegria constatar que precisamente estes três dados que emergem da narração dos Actos: a conversão, a cruz e a oração, são essencialmente os elementos em que se baseia o movimento para reconstruir a unidade dos Cristãos. Concluindo aqui, sobre o túmulo do Apóstolo das Gentes, a semana de orações com este rito, que nos vê reunidos num profundo vínculo de caridade ao redor do mesmo Cristo salvador, por estes elementos devemos todos ser renovados: Ao dizer isto, estou certo de interpretar os sentimentos dos Irmãos das outras Igrejas, que desejaram participar nesta celebração. A cada um deles vai a minha mais cordial saudação.

Nesta atmosfera de caridade ecuménica encontra perfeita colocação a breve mas tão rica história da Beata Maria Gabriela da Unidade, que intencionalmente quis elevar às honras dos altares nesta data e neste templo. A sua vida, mediante a vocação trapista antes, e mediante a oferta da vida pela unidade dos cristãos depois, foi toda ela marcada por estes mesmos três valores essenciais: conversão, imolação pelos irmãos, oração.

Nem podia ser de outro modo. Afirma-o o Concilio Vaticano II, que precisamente nesta Basílica e nesta mesma data foi anunciado pelo meu venerado predecessor João XXIII. De facto, em tema de ecumenismo, ele exprime-se nestes precisos termos: "Não há verdadeiro ecumenismo sem conversão interior. É que os anseios de unidade nascem e amadurecem a partir da renovação da mente, da abnegação de si mesmo e da libérrima efusão da caridade. Por isso, devemos implorar do Espírito Santo a graça da sincera abnegação, humildade e mansidão em servir, e da fraterna generosidade para com os outros (...). Esta conversão do coração e esta santidade de vida, juntamente com as orações particulares e públicas pela unidade dos cristãos, devem ser tidas como a alma de todo o movimento ecuménico, e com razão podem ser chamadas ecumenismo espiritual" (Decreto sobre o Ecumenismo, II, 7. 8).

Aliás, todo o capítulo 17 de São João — capitulo cujas páginas foram encontradas amarelecidas pelo quotidiano manuseio do pequeno evangelho pessoal da Irmã Maria Gabriela — que outra coisa é senão a oração que nasce do Coração sacerdotal de Cristo, que, na perspectiva iminente da Cruz, implora por todos os que hão-de confiar a Ele a conversão do coração?

4. É-me grato ressaltar, e indicar de modo particular aos jovens, tão apaixonados por espírito de competição e por desporto, que a jovem religiosa trapista, a quem hoje tributamos pela primeira vez o título de Beata, soube fazer próprias as exortações do Apóstolo aos fiéis de Corinto (1 Cor. 9, 24) a "correr no estádio para ganhar o prémio", conseguindo no decurso de poucos anos coleccionar — no estádio da santidade — uma série de primados, a ponto de fazer inveja aos mais qualificados campeões. De facto, historicamente ela é a primeira Beata que sai das fileiras da Juventude Feminina da Acção Católica; a primeira de entre as jovens e os rapazes da Sardenha; a primeira de entre as monjas e os monges trapistas; a primeira de entre os que trabalham ao serviço da unidade. Quatro primados semeados no treinamento daquela "escola do serviço divino" proposta pelo grande Patriarca São Bento, que sem dúvida é válida ainda hoje após 15 séculos, se for capaz de suscitar tais exemplos de virtude em quem souber acolhê-la e colocá-la em prática "com intenção de amor".

De facto, é precisamente nesta fidelidade à escuta que a jovem Maria Sagheddu — por natureza génio forte e irritante, como é descrito pelas testemunhas e até pela sua santa mãe — conseguiu realizar aquela "conversão do coração", que São Bento pede aos seus filhos. Conversão do coração que é verdadeira e primeira fonte de unidade.

Desde o momento em que a jovenzinha obstinada e impetuosa, após o contacto com a cruz de Cristo mediante a morte da sua irmã predilecta, decidiu entregar-se a Ele, recorreu dócil e humilde à guia de um pai espiritual, e aceitou inserir-se na vida da paróquia, inscrevendo-se na Juventude Feminina da Acção Católica, dedicando-se à catequese dos mais pequeninos, tornando-se serviçal para com os anciãos, passando horas em oração; a partir daquele momento é que teve início aquela "conversão" que a acompanhou todos os dias, até acolher o chamamento vocacional, e deixar atrás de si — com apenas 21 anos — a terra amada e as queridas pessoas da sua Sardenha, para se apresentar, solícita à voz do Esposo divino, às portas da Trapa.

5. É precisamente esta sua conversão a Deus, esta sua precisão de unidade no amor, que constitui a premissa e o terreno fértil em que o Senhor fará descer, no momento aprazado, o chamamento ao dom total pelos irmãos.

A sua oferta da vida pela unidade, que o Senhor lhe inspirou durante a semana de orações nestes mesmos dias de 1938 — há quarenta e cinco anos — e que Ele mostrou apreciar como fragrante holocausto de amor, não é o início, mas a plena realização da corrida espiritual da jovem atleta. Da alcançada união com a Voz de Deus, nasce a moção do Espírito a abrir-se aos irmãos.

É a descoberta do Vertical, do Absoluto de Deus, que dá sentido e eficaz urgência à abertura horizontal aos problemas do mundo. Há aqui um apelo, precioso hoje mais do que nunca, contra a fácil tentação de um horizontalismo cristão que prescinda da busca do Vértice; de um psicologismo que ignore a misteriosa presença e a imprevisível acção da Graça; de um activismo que parta e se conclua só a nível e em perspectiva terrenos; de uma fraternidade que renuncie a ser iluminada por uma comum paternidade divina.

É destas premissas que o gesto heróico da Irmã Maria Gabriela se eleva às alturas de grande acontecimento eclesial. Precisamente porque nasce de uma sublime conversão voltada para o Pai, a sua abertura aos irmãos a torna semelhante ao Cristo crucificado, atinge valor histórico, assume importância ecuménica.

Isto nos induz não só a admirar e venerar, mas a reflectir, a imitar, a aprofundar, a sofrer e sobretudo a orar, a fim de enraizar cada vez mais em Cristo o nosso caminho de conversão.

Assim a Beata Maria Gabriela Sagheddu, que de maneira graciosa une ao nome do Anjo da anunciação o da Virgem da escuta, torna-se sinal dos tempos e modelo daquele "Ecumenismo espiritual", recordado pelo Concilio. Oxalá Ela nos encoraje a voltar o nosso olhar — para além e acima das inevitáveis dificuldades próprias do nosso ser humano — para as maravilhosas perspectivas da unidade eclesial, cujo progressivo afirmar-se está ligado ao cada vez mais profundo desejo de nos convertermos a Cristo, para tornar operante e eficaz o seu anseio: Ut omnes unum sint!

Sim, ó Senhor, que todos se aprestem a ser um só. Juntamente connosco, vo-lo pede a nova Beata, que na chama deste vosso anseio consumiu em alegre oblação a própria jovem existência.

Omnes... unum. Amém!

 

 

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