VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II
A CABO VERDE, GUINÉ-BISSAU, MALI E BURKINA FASO
[25 DE JANEIRO - 1º DE FEVEREIRO]
CELEBRAÇÃO NA ESPLANADA DE «QUEBRA CANELA» EM PRAIA
HOMILIA DO SANTO PADRE
Praia (Cabo Verde), Sexta-feira, 26 de Janeiro de 1990
Amados irmãos e irmãs em Cristo,
“ Dai ao Senhor, ó famílias dos povos, / dai ao Senhor glória e poder, / dai ao Senhor a glória do seu nome” ( Sl 96 (95), 7-8).1. Com estas palavras do Salmista, a Liturgia convida todas as nações, as “famílias dos povos”, a dar glória a Deus. A glória de Deus é o fim último de toda a criação, e, de modo particular, do homem e da sociedade humana. É na glória de Deus que o homem encontra a realização, definitiva do seu destino. Em Deus encontra também a eterna elevação como proclamava, já no século segundo, Santo Ireneu: “A glória de Deus é o homem que vive” (S. Irenaei Adversus Haereses, IV, 20, 7: PG 7, 105): é o homem que vive a vida eterna em Deus.
Neste dia de hoje, o convite do Salmista destina-se especialmente a um de entre todos os povos da terra: à Nação de Cabo Verde, à gente que habita nestas ilhas do Oceano Atlântico; e de modo particular a vós, habitantes da Ilha de Santiago, e a quantos aqui estais congregados.2. Saúdo-vos a todos. Ao Senhor Presidente da República e ao Senhor Bispo, Dom Paulino do Livramento Évora, agradecendo-lhes o bom acolhimento. A todas as Autoridades e a todos os diocesanos de Santiago de Cabo Verde. Muitos vieram de ilhas distantes, com sacrifício, certamente. Que Deus a todos abençoe!
O sentido religioso, di-lo a própria história, marcou sempre a vossa vida. Mas é à evangelização que se deve o estardes hoje aqui, para juntamente, com o sucessor de São Pedro, dar “glória ao Senhor”, celebrar Jesus Cristo.Exorto-vos, por isso, a terdes um sentimento agradecido para com os missionários, que vos trouxeram a possibilidade de serdes discípulos de Cristo, de acolherdes a sua salvação; nesse sentimento, envolvei também os vossos antepassados, que se mostraram disponíveis para receber o Evangelho. Mas todos juntos, na Eucaristia, agradeçamos principalmente a Deus. É sempre Ele que dispõe os corações: o dos que pregam e o dos que acolhem a Boa Nova.
3. Jesus Cristo, Deus-Filho, consubstancial ao Pai, fez-se homem, em tudo semelhante a nós, excepto no pecado (Cfr. Hb 4, 15); trouxe ao mundo a salvação: “g raça, misericórdia e paz, da parte de Deus Pai” (2 Tm 1, 2), como proclamava São Paulo, na primeira Leitura de hoje. Trouxe-nos a vida eterna que Deus Pai nos prometera n’Ele. Renovou-nos o convite do Salmista: dai glória a Deus, sede a glória de Deus.Para realizar esse desígnio divino, como lemos no Evangelho, Jesus percorria as cidades e as aldeias, na região onde habitava; e ia “ensinando... e proclamando a Boa Nova do Reino, e curando todas as doenças e todos os padecimentos” (Mt 9, 35).
Em Jesus Cristo, teve início o Evangelho do Reino de Deus; e, no seu sacrifício redentor, realizou-se a Nova Aliança com a humanidade. E a missão do Evangelho e da Nova Aliança transmitiu-a o mesmo Cristo, Redentor do mundo, à Igreja, que edificou sobre o fundamento dos Apóstolos.Foi Ele próprio quem chamou os Doze; e de entre eles, conferiu a Pedro o primado. E, já depois da sua ressurreição, chamou ainda a Paulo como último desses Apóstolos. Saulo de Tarso perseguia violentamente os cristãos, e o nome de Cristo. Mas, quando ia a caminho de Damasco, apareceu-lhe o Senhor ressuscitado e transformou-lhe a alma. O perseguidor Saulo converteu-se no Apóstolo ardoroso de Cristo e, juntamente com Pedro, em coluna da Igreja.
4. A Liturgia recorda hoje a memória de dois discípulos de São Paulo: Timóteo e Tito; mas celebrava ontem a festa litúrgica da conversão de São Paulo. E, a esta festa, está intimamente ligado o anúncio do Concílio Vaticano II, de cujo encerramento celebramos este ano o vigésimo quinto aniversário. Este Concílio foi um acontecimento de grande importância para toda a Igreja, fundada sobre os Apóstolos; e constituiu o início de uma fase na sua vida. Deu novo impulso à colegialidade dos Bispos e trouxe um novo espírito de co-responsabilidade e de colaboração maior entre os seus membros: sacerdotes, religiosos e leigos.Hoje, convosco aqui, as portas da África, recordo estas datas para dar graças a Deus, pela grande obra do mesmo Concílio, e para exortar a todos a viverem as suas directrizes. É no Vaticano II que se radica a iniciativa da assembleia especial do Sínodo dos Bispos para a África. Também em Cabo Verde está, certamente, a ser preparado esse evento com esperança e oração confiante nos bons frutos que trará à Igreja, nesse Continente e no mundo inteiro.
5. Fundada sobre o alicerce dos Apóstolos, a Igreja foi-se difundindo até às extremidades da terra. E a fé cristã, apostólica e católica chegou também a Cabo Verde. Começou aqui a construção de Deus, “o edifício de Deus” (1 Cor 3, 9), por obra dos “enviados”, dos continuadores dos Apóstolos. Com razão, a Liturgia compara a Igreja à “cidade santa” e a chama “nova Jerusalém”, em cuja edificação entram todos os baptizados, como “ pedras vivas” (Cfr. 1 Pd 2, 5). E o Concílio lembra que ela é o “ tabernáculo de Deus entre os homens”, a casa de Deus, em que habita a sua família (Cfr . Lumen Gentium, 6). Todos os baptizados, de facto se tornam filhos de Deus e irmãos em Cristo. Chamados dos povos mais diversos e mais distantes entre si, são elevados à comunhão com Deus, formam o Corpo místico de Cristo e a família de Deus. Nessa condição, são vivificados, unificados e dirigidos pelo Espírito Santo, que é um só e o mesmo, e que faz na Igreja algo semelhante ao que a alma faz no corpo do homem, como dizem os Santos Padres: um só corpo, com diversos membros, cada um com as suas funções. Além destas imagens, a Igreja, no Concílio Vaticano II, apresentou-se ao mundo como lugar do “diálogo da Salvação”.Jesus Cristo, comparou a Igreja, a um “grão de mostarda”; àquela semente pequenina, que, crescendo, se torna a maior planta do campo, e faz-se quase uma árvore; de modo que as aves do céu vêm pousar nos seus ramos (Cfr. Mt 13, 32). De facto, a Igreja, não obstante provações e dificuldades, continua a expandir-se como uma árvore viçosa.
Começou como grupo dos Apóstolos e discípulos; alargou-se depois aos muitos que tiveram a dita de participar na despedida do Senhor Ressuscitado; estendeu-se seguidamente aos milhares que acreditaram, no dia do Pentecostes.6. Depois do Pentecostes de Jerusalém, confortada pelo Espírito Santo, continuou a estender os ramos, a começar pelas regiões situadas em volta do Mediterrâneo. Mas bem depressa chegou à África. Desde os primeiros séculos os territórios da parte norte deste grande Continente, viram florescer comunidades cristãs pujantes de vida e fervor, com numerosos Mártires, Virgens, Confessores e grandes Doutores da Igreja. E a mensagem não ficou só no norte; depois, gradualmente, o anúncio evangélico da salvação veio descendo também para o sul.
A este vosso Arquipélago, o anúncio de Evangelho chegou há mais de quinhentos anos. Pouco tempo após a fase missionária, propriamente dita, a Sé Apostólica de Roma criou a Diocese de Santiago de Cabo Verde, em 1533; e ficou estruturada esta Igreja local. Ao princípio, estendia-se por uma vasta região do continente da África. Depois, com o andar dos tempos, como sabeis, a Diocese de Cabo Verde ficou limitada às ilhas do Arquipélago.Diante da actuação do plano salvífico de Deus em Cristo, pela difusão da Igreja, sacramento da salvação, confiado aos Apóstolos e aos seus sucessores até ao actual Bispo de Cabo Verde, é verdadeiramente digno e justo que “as famílias dos Povos dêem ao Senhor glória e poder; dêem glória ao seu nome” (Cfr. Sl 96 (95) 7-8). E hoje, de modo especial, o Povo cabo-verdiano.
Encontramo-nos já no limiar do terceiro Milénio cristão. Todos desejamos que ele venha a ser caracterizado por uma nova florescência da vida cristã. Estamos hoje aqui reunidos a rezar, para que o dom incomensurável da fé seja vivido mais conscientemente e participado mais generosamente, por parte de cada um de nós; para que cada Cabo-verdiano, se sinta comprometido pessoalmente na evangelização, rezando, dando bom exemplo e agindo.7. No Evangelho desta Missa líamos que “Jesus, ao ver as multidões, se encheu de compaixão, por andarem fatigadas e abatidas, como ovelhas sem pastor. E então disse aos discípulos: " A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos! Pedi, pois, ao Dono da seara que mande trabalhadores para a sua seara "” (Mt 9, 36-38).
A Igreja não deixa de recordar estas palavras do Bom Pastor, Jesus Cristo. Constantemente eleva as suas preces para que Deus “mande trabalhadores para a sua seara”; é uma oração que deve perdurar no coração e nos lábios de todos nós: a oração pelas vocações. Em primeiro lugar e sobretudo, pelas vocações sacerdotais. E, depois também pelas vocações religiosas: masculinas e femininas, as pessoas consagradas, irmãos e irmãs. Outrora, identificavam-se com os Religiosos e Religiosas; e, hoje em dia, temos também os membros dos Institutos Seculares.Temos, igualmente, os leigos comprometidos no apostolado da Igreja. Também eles “trabalhadores” preciosos para a “seara” de Deus, conforme foi recordado no mais recente Sínodo dos Bispos, e exarado depois na Exortação “Christifidelis Laici”.
8. Também aqui em Cabo Verde, continua a construção da Igreja nos corações dos homens. Todos os baptizados e não apenas os sacerdotes e os consagrados são por ela responsáveis. Seguir a Cristo é vocação para o apostolado, que a todos compromete. Os leigos, com a sua peculiar vocação e missão na Igreja, estão chamados a desempenhar um papel importante. Tanto mais que escasseiam os que se dediquem exclusivamente ao serviço do Reino.Dado também a organização da vida moderna, sente-se a necessidade de uma presença dos cristãos leigos, activa e evangélica, ao mesmo tempo que dinâmica e transformadora, para atalhar e atacar as causas de males, que paralisam ou corroem a vida e a qualidade de vida, e impedem a “construção” e o crescimento da Comunidade eclesial e também da comunidade cristã e social. Importa que os leigos saibam tornar-se testemunhas e arautos de propostas conformes à justiça e à caridade; capazes de influenciar na melhoria das estruturas sociais, económicas e políticas. Importa que saibam ser modelos de solidariedade e de fraternidade, com o pensamento e as obras de cristãos autênticos.
Aonde não podem chegar os “pregadores” do Evangelho têm de chegar os leigos; estes estão chamados, antes de mais, a fazer com que resplandeça a novidade e a força do Evangelho na sua vida quotidiana, no seu ambiente familiar e social. Depois, estão também chamados a contribuir para a santificação do mundo. Devem preocupar-se e aplicar-se, com entusiasmo e constância, numa verdadeira actividade missionária, em relação àqueles que ainda não crêem em Deus: devem deixar-se conduzir por uma caridade apostólica, em relação aos que não vivem a fé recebida no Baptismo (Cfr. Christifidelis Laici, 34).Onde haja indiferença e a Salvação não chegue às vidas, há que lançar uma nova evangelização, à base de capacidade criativa e invenção pastoral.
A este empenhamento dos leigos, corresponde da parte dos pastores das comunidades, em união com o Bispo, serem mestres da verdade e testemunhas da esperança, modelos de caridade fraterna e conciliadores de todas as boas vontades. Incumbe aos mesmos pastores ajudarem os irmãos leigos a formar o espírito crítico e a crescer no discernimento cristão, para saberem comportar-se como c onstrutores da sociedade, em ordem à “civilização do amor”.9. Como povo situado numa encruzilhada de civilizações vos, irmãos e irmãs, tendes uma tradição, em que a vida familiar, os hábitos sociais e a própria cultura estão marcados pelo Evangelho. Cada Cabo-verdiano pode sentir honra, em repetir aquela palavra: “a exemplo de meus antepassados”, que escutámos na primeira Leitura.
Entretanto a vossa terra, tornou-se outrora, conhecida por ser ponto estratégico para a guerra e lugar que encurtava distâncias para o comércio; infelizmente, também para o abominável comércio de pessoas humanas, nos tempos da escravatura.É até possível que persistam cicatrizes disso na vossa cultura. Hoje aqui convosco, duas coisas quereria sublinhar, pois são uma linha constante do Magistério eclesiástico:
A primeira é: NÃO às discriminações de todo o tipo; jamais a escravização do homem pelo homem; nunca mais qualquer forma de violência, demolidora da dignidade das pessoas; jamais, nunca mais, a negação dos direitos de Deus sobre o homem: “o homem que vive é a glória de Deus” A segunda é que, ao visitar-vos, fico com a impressão de que os Cabo-verdianos, fazem como aconselha o Apóstolo: esquecendo-se do que fica para trás, querem avançar para diante, para o futuro. Para um futuro cristão, cada vez melhor.10. O Apóstolo São Paulo escreve a Timóteo: “Recomendo-te que dês nova força ao dom de Deus que em ti se encontra pela imposição das minhas mãos” (1 Tm 1, 6). São Timóteo era sacerdote e bispo: “a imposição das mãos” é decisiva para a consagração ao serviço da Igreja: serviço, que é afinal a vocação dos “administradores dos mistérios de Deus” (Cfr. 1 Cor. 4, 1).
Hoje, portanto, o Bispo de Cabo Verde (assim como todos os outros Bispos) e também todos os Sacerdotes devem recordar “a imposição das mãos” e dar nova força interior ao dom que anda ligado a esse gesto.Mas não somente eles. Igualmente, todas as pessoas consagradas; Religiosos, Religiosas, irmãos e irmãs devem hoje reavivar a própria consagração. Devem, ao mesmo tempo, reavivar e fortalecer o carismo recebido de Deus, juntamente com a herança de suas respectivas Famílias religiosas e dos Fundadores.
Devem fazê-lo igualmente todos os baptizados e confirmados: todos os leigos, membros do Povo de Deus em Cabo Verde.Para todos é válido, efectivamente, o que escreve o Apóstolo: “Deus não nos concedeu um espírito de timidez, mas un espírito de fortaleza, de caridade e de sabedoria” (2 Tm 1, 7).
Não nos envergonhemos, pois, do testemunho que se deve dar de nosso Senhor Jesus Cristo: “Sereis minhas testemunhas!” ( At 1, 8). E, se for preciso, saibamos também nós sofrer pelo Evangelho, apoiados na força de Deus (Cfr. 2 Tm 1, 8).Esta é a mensagem que deseja deixar-vos João Paulo II, Bispo de Roma e sucessor de São Pedro, neste dia em que lhe é dado visitar a vossa Igreja e sociedade, aqui em Cabo Verde. Seja louvado nosso Senhor Jesus Cristo!
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