VISITA PASTORAL À REGIÃO DA LOMBARDIA
20-22 DE MAIO DE 1983
DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
DURANTE A VISITA AO TEATRO "ALLA SCALA" DE MILÃO
Sábado, 21 de Maio de 1983
1. Encontrar-me esta noite neste Teatro, universalmente celebrizado no mundo, constitui não só uma sugestiva pausa de carácter estético e cultural, mas uma honra e como o coroamento desta intensa jornada que me fez conhecer tantas componentes da realidade sócio-religiosa da Cidade e da Região.
Já o especial Concerto, que a Direcção e a prestigiosa Orquestra gentilmente quiseram oferecer-me, e que me recordou aquele executado no Vaticano, na Sala Paulo VI, em Fevereiro de 1979; e depois a significativa presença de tantos compositores, maestros, executores e, mais em geral, de expoentes e representantes do mundo da arte; e ainda a participação das máximas Autoridades civis com todos os Presidentes das Câmaras Municipais da Região de Milão: são estes outros tantos estímulos, que me obrigam a manifestar a minha alegria na expressão do mais vivo e cordial agradecimento. Obrigado, digo a todos vós, e obrigado a cada um de vós.
O que me demonstrastes, e estais ainda a demonstrar-me, toca-me profundamente, e, dado que sei que transcende a minha mesma pessoa, a gratidão é também pelo reconhecimento, que disto deriva, à missão a mim conferida na universal e única Igreja de Cristo.
2. Um Papa no "Scala" de Milão é um acontecimento singular, difícil de ser definido. Mas esta vinda, embora insólita, quer ser um acto de presença no mundo da arte isto é, num mundo que está ao serviço do espírito, que precisa de fugir da fadiga diária e de encontrar na acção cénica e na audição musical uma realidade diversa e mais elevada. O mundo artístico, que aqui teve e tem sempre um especial culto, está ligado às personalidades que formam grande parte, também hoje, da civilização universal. Não digais simplesmente música; dizei vida moral, como expressão do mais elevado sentir; dizei poesia.
Eis que logo se apresenta, na cena deste ambiente solene, a imagem de Giuseppe Verdi, que cantou a pátria italiana, cantou o amor, a dignidade humana num complexo de composições, que se tornaram voz e coro de muitas gerações, sem excluir a presente. Para vós intelectuais, e para nós todos — creio — uma voz como a de Verdi não pode deixar de evocar a figura de um grande lombardo por ele venerado, Alessandro Manzoni, génio e poeta do pensamento cristão, de cujos passos as ruas não distantes deste Teatro conservam imorredoura recordação. Seja no caminho de reencontro da fé, seja com as suas obras literárias, Manzoni anunciou um princípio fundamental da teologia e da arte, válido para todos os tempos: não é possível separar do empenho moral as verdades da fé católica. Não devem ser separados Deus e o homem: não há entre eles dissídio e luta, mas só união e amor. Ele defendeu estes princípios nas Observações sobre a moral católica e tornou-os evidentes no enredo de Promessi Sposi, que é história dos humildes, tirada da vida, história de um povo atormentado e ofendido, sobre o qual porém vela a Providência de Deus, "o qual não perturba nunca a alegria dos seus filhos senão para lhes preparar uma alegria mais ampla e maior" (cap. VIII). Livro de poesia, de sabedoria, de consolação, que pertence ao património universal da humanidade.
3. Estes dois nomes, por mim recordados, parecem-me bem dignos de ser não só propostos, mas, desejaria dizer, colocados ao lado de vós, artistas, escritores, pesquisadores, aqui reunidos como altos representantes da cultura lombarda. Tendes um grande passado, documentado nas ricas bibliotecas, nos centros académicos como neste mesmo Teatro. Mas existe também um presente, do qual precisamente vós, com as vossas obras literárias, de pintura ou musicais, sois os protagonistas dos artífices. Sois vós que dais vida à "vida do pensamento" com o vosso trabalho.
Que é esta vida do pensamento? É liberdade, é busca, é conquista; não é lícito realizar uma espécie de sequestro da cultura numa só direcção, prescindindo da fé ou substituindo-a com vantagens não definíveis. Precisamente nesta busca, a fé cristã deseja estar perto de todos, respeitando as razões da cultura e da arte, acolhendo a verdade onde quer que se encontre para ajudar a compreendê-la e a potenciá-la segundo aquela luz, que não provém só da inteligência do homem. Jesus Cristo — como lemos no Prólogo de São João "era a luz verdadeira que ilumina todo o homem": Ele era a verdadeira, luz do mundo (cf. Jo. 8, 12).
Estai sempre prontos a acolher d'Ele esta luz superior, a qual, sendo um dom que se acrescenta aos vossos pessoais talentos, não pode ser uma posse fechada e egoísta mas, antes, deve ser difundida e oferecida em sentido missionário a quantos estão à espera de um socorro. O Ano Jubilar da Redenção, no programa de penitência e de renovamento, chama cada um a reencontrar-se, em sentido fraterno, com todas as classes sociais para dar à vida o seu fulcro de esperança e de união, superando toda a tentação de luta e de prepotência. Como as obras de misericórdia corporal, que são um dever de todos, encontram expressão em instituições, hospitais e associações, assim a vós, artistas e intelectuais, peço aqui, numa Cidade de tão elevada cultura, que desenvolvais de modo amplo na luz da fé não só humana, mas também e sobretudo cristã as obras de misericórdia espiritual, que talvez sejam hoje, no contexto de uma sociedade consumista, ainda mais necessárias do que as primeiras. Hoje há dúvida, há tristeza, há infelizmente bastante difundida uma vasta crise moral. Sente-se hoje a necessidade de confortar, de iluminar, de ajudar. Hoje é preciso construir.
E o mundo da cultura e da arte é chamado a construir o homem: a manter o caminho na busca, muitas vezes atormentada, do verdadeiro, do bem, do belo. A cultura e a arte são unidade, não dispersão; são riqueza, não depauperamento; são busca apaixonada, às vezes trágica, mas finalmente também síntese estupenda, na qual os valores supremos da existência, também nos seus contrastes entre luz e trevas, entre bem e mal — claramente identificados e identificáveis — são ordenados ao profundo conhecimento do homem, ao seu melhoramento, e não à sua degradação. É necessária uma ecologia do espírito ao serviço do homem: daquele homem que o grande Ambrósio de Milão chama "a mais excelsa obra deste mundo... como o compêndio do universo e a beleza suprema das criaturas do mundo" (Exameron VI, 10, 75; PL XIV, 272).
E nesta tarefa difícil, mas exaltante, sente-se também necessidade de vós, artistas e intelectuais caríssimos, meus amigos: com a vossa arte, com o prestígio e o ensino da vossa arte, estai presentes! E possa também a perspectiva do Evangelho encontrar-vos solidários, como vos pediu o Concílio Vaticano II na constituição pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo contemporâneo (cf. nn. 53-62; Mensagem do Concilio aos Homens da Arte) e como vos propôs o próprio Paulo VI, vosso antigo Arcebispo, no memorável Discurso dirigido aos Artistas na Capela Sistina (cf. Insegnamenti di Paolo VI, vol. II, 1964, pp. 312-318).
4. Ao vir a Milão para participar no Congresso Eucarístico Nacional, não posso deixar de fazer uma referência específica a este importante acontecimento religioso e eclesial, que se propõe com a sua vasta temática a todos os fiéis católicos e é tal que atinge também vós artistas e enquanto artistas. Digo atingir no sentido de interessar e de atrair, pois o mistério eucarístico — "mistério de fé", como dizemos na Liturgia — induz com as faculdades intelectivas da alma, também a fantasia e o coração a fazerem um esforço, ainda que inadequado, de compreensão, de admiração, de esclarecimento, de interpretação. E, de facto, isto muitas vezes inspirou o trabalho de arquitectos, de pintores, de poetas e de músicos! As grandes Catedrais — o vosso Duomo! — que outra coisa são, senão preciosos escrínios da presença eucarística? E como não recordar, neste ano do Centenário de Rafael, o grande afresco da "Disputa", que se admira nos Aposentos Vaticanos, e que é de facto a apoteose do Santíssimo Sacramento? E como não falar da "Ceia" de Leonardo, obra-prima de que é justamente orgulhosa esta metrópole?
Ora, um tal esforço também vós sois chamados a compartilhar, dando segundo a vossa peculiar sensibilidade e respectiva competência um contributo, em que se exprimem ao mesmo tempo a firmeza da fé católica e a têmpera da vossa arte. "Todas as grandes obras de arte — disse eu no já citado encontro com o mundo do "Scala" — são, na sua inspiração e na sua raiz, religiosas" (Insegnamenti, II, 1979, I, p. 370).
Faço votos por que estas minhas palavras, com as quais vos abri o meu coração — cônscio como sou das particulares responsabilidades, que a todos vós aqui presentes incumbem de vários modos — possam guiar-vos sempre não só na vossa vida pessoal, mas também no vosso empenho de comunicação, de serviço, ou melhor, de exemplo e de testemunho à inteira comunidade dos irmãos.
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