DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
AOS PARTICIPANTES NO CONGRESSO MUNDIAL
SOBRE A PASTORAL DOS DIREITOS HUMANOS
Sábado, 4 de Julho de 1998
Senhores Cardeais
Caros Irmãos no Episcopado
Senhoras e Senhores!
1. É com particular alegria que acolho aqui, nesta manhã, os participantes no Congresso Mundial sobre a Pastoral dos Direitos Humanos, que o Pontifício Conselho «Justiça e Paz», no quadro das iniciativas tomadas pela Santa Sé, quis convocar para celebrar o quinquagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. De todo o coração agradeço ao novo Presidente do Pontifício Conselho, D. François-Xavier Nguyên Van Thuân, a apresentação dos vossos trabalhos. E sinto-me feliz pela ocasião que me é dada para exprimir ao Presidente demissionário, o querido e infatigável Cardeal Roger Etchegaray, a minha viva gratidão pelo devotamento e a competência com que dirigiu o Dicastério durante catorze anos.
Saúdo todos os participantes, e com eles os membros, os consultores e os colaboradores do Pontifício Conselho. A presença entre vós de representantes de outras Igrejas cristãs e de diversos Organismos internacionais é um sinal da nossa comum preocupação e do nosso empenho por todos para a promoção da dignidade da pessoa humana no mundo de hoje.
2. O tema do desígnio de Deus para a pessoa humana, da «dimensão humana do mistério da Redenção», foi um dos objectos principais da minha primeira Encíclica Redemptor hominis (cf. n. 10). Ao considerar o homem como «a primeira e fundamental via da Igreja» (n. 14), mostrei o significado dos «direitos objectivos e invioláveis do homem» (n. 17) que, no meio das vicissitudes do nosso século, pouco a pouco recebeu a sua formulação no plano internacional, de modo especial na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Em seguida, em todo o meu ministério de Pastor da Igreja universal, senti o dever de dedicar uma atenção particular à salvaguarda e promoção da dignidade da pessoa e dos seus direitos, em todas as etapas e circunstâncias da sua vida política, social, económica ou cultural.
Ao analisar, na Encíclica Redemptor hominis, a tensão entre os sinais de esperança concernente à salvaguarda dos direitos humanos e os sinais mais dolorosos dum estado de ameaça para o homem, apresentei a questão das relações entre «a letra» e «o espírito» destes direitos (cf. n. 17). Ainda hoje, pode-se constatar o abismo que existe entre «a letra », reconhecida a nível internacional nos numerosos documentos, e «o espírito », actualmente muito longe de ser respeitado, pois o nosso século ainda está marcado por graves violações dos direitos fundamentais. No mundo há sempre inúmeras pessoas, mulheres, homens e crianças, cujos direitos são cruelmente aviltados. Quantas pessoas são injustamente privadas da sua liberdade, da possibilidade de se exprimir livremente ou de professar com liberdade a sua fé em Deus? Quantas pessoas, por causa da guerra, de discriminações injustas, do desemprego ou de outras situações económicas desastrosas, não podem chegar ao pleno gozo da dignidade que Deus lhes deu e dos dons que d'Ele receberam?
3. O primeiro objectivo da pastoral dos direitos humanos é, pois, fazer com que a aceitação dos direitos universais na «letra» leve à prática concreta do seu «espírito», em toda a parte e da maneira mais eficaz, a partir da verdade sobre o homem, da igual dignidade de toda a pessoa, homem ou mulher, criada à imagem de Deus e que se tornou filha de Deus em Cristo.
No nosso planeta, toda a pessoa tem o direito de conhecer a «verdade sobre o homem» e de poder viver nele, cada um segundo a sua identidade pessoal insubstituível, com os seus dons espirituais, a sua criatividade intelectual e o seu trabalho, na família – também ela sujeito particular de direitos – e na sociedade. Cada ser humano tem o direito de desenvolver em plenitude os dons que recebeu de Deus. Por conseguinte, todo o acto que lesa a dignidade do homem e que frustra as suas possibilidades de se realizar, é um acto contrário ao desígnio de Deus para o homem e para a criação inteira.
A pastoral dos direitos humanos está, então, em relação estreita com a pró- pria missão da Igreja no mundo contemporâneo. A Igreja, com efeito, jamais pode abandonar o homem, cujo destino está ligado a Cristo de maneira estreita e indissolúvel.
4. O segundo objectivo da pastoral dos direitos humanos consiste em apresentar «as questões essenciais relativas à situação do homem hoje e no futuro» (Redemptor hominis, 15), com objectividade, lealdade e sentido das responsabilidades.
A esse respeito, pode-se constatar que as condições económicas e sociais em que vivem as pessoas assumem uma importância particular nos nossos dias. A persistência da pobreza extrema, que contrasta com a opulência duma parte das populações, em um mundo marcado por grandes conquistas humanistas e científicas, constitui um verdadeiro escândalo, uma das situações que entravam, de modo mais grave, o pleno exercício dos direitos humanos no momento actual. Nas vossas actividades, sem dúvida tereis constatado, quase todos os dias, os efeitos causados pela pobreza e a fome, ou a impossibilidade de aceder aos serviços mais elementares, na vida das pessoas e na luta pela própria subsistência e a do seu próximo.
Com muita frequência, as pessoas mais pobres, por causa da precariedade da sua situação, tornam-se as vítimas atingidas de modo mais sério pelas crises económicas, que afectam os países em vias de desenvolvimento. A prosperidade económica, deve-se recordar, é antes de tudo o fruto do trabalho humano, dum trabalho honesto e muitas vezes penoso. A nova arquitectura da economia em escala mundial deve basear-se sobre os fundamentos da dignidade e dos direitos da pessoa, sobretudo o direito ao trabalho e à protecção do trabalhador.
Isto requer então, hoje, uma atenção renovada aos direitos sociais e económicos, no quadro geral dos direitos humanos que são indivisíveis. É necessário repelir toda a iniciativa de negar uma real consistência jurídica a estes direitos, e é preciso repetir que está empenhada a responsabilidade comum de todos os actores – poderes públicos, empresas, sociedade civil –, a fim de chegar ao seu exercício efectivo e pleno.
5. Na pastoral dos direitos humanos, a dimensão educativa assume hoje uma importância particular. A educação para o respeito dos direitos do homem levará naturalmente à criação duma verdadeira cultura dos direitos humanos, necessária para que funcione o estado de direito e para que a sociedade seja realmente fundada sobre o respeito pelo direito. Em Roma realiza-se neste momento a Conferência diplomática das Nações Unidas para a instituição dum Tribunal penal internacional. Faço votos por que esta Conferência chegue, como todos esperam, à criação duma nova instituição a fim de proteger a cultura dos direitos humanos em escala mundial.
O respeito total pelos direitos humanos poderá, de facto, ser integrado em cada uma das culturas. Os direitos do homem são, por natureza, universais, pois têm como fonte a igual dignidade de toda a pessoa. Ao reconhecer a diversidade cultural que existe no mundo e os diferentes níveis do desenvolvimento económico, convém repetir com vigor que os direitos humanos concernem a cada pessoa. Como já declarei na Mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano (cf. n. 2), o argumento da especificidade cultural não deve ser utilizado para encobrir violações dos direitos humanos. Mais ainda, é preciso antes promover um conceito integral dos direitos de toda a pessoa ao desenvolvimento, no sentido em que o meu predecessor Paulo VI desejava o desenvolvimento «integral», a saber, o desenvolvimento de cada pessoa e de toda a pessoa (cf. Populorum progressio, 14). Colocar no centro da reflexão a promoção de um só direito ou duma só categoria de direitos, em detrimento da integridade dos direitos humanos, significaria trair o espírito da própria Declaração universal.
6. A pastoral dos direitos humanos, pela sua própria natureza, deve dedicar-se de maneira particular à dimensão espiritual e transcendente da pessoa, sobretudo no contexto actual onde se manifesta a tendência a reduzir a pessoa a uma só das suas dimensões, a económica, e a considerar o desenvolvimento em termos antes de tudo económicos. Da reflexão sobre a dimensão transcendente da pessoa deriva a obrigação de proteger e promover o direito à liberdade de religião. Este Congresso pastoral dá-me a ocasião para exprimir a minha solidariedade e o meu apoio, na oração, para com todos os que, ainda hoje no mundo, não podem exercer de maneira plena e livre este direito, pessoalmente e como comunidade. Aos responsáveis das nações dirige-se o meu premente e renovado apelo a garantirem a realização concreta deste direito para todos os seus cidadãos. Junto dos crentes, com efeito, os Poderes públicos encontrarão homens e mulheres de paz, desejosos de colaborar com todos em vista de edificar uma sociedade mais justa e mais pacífica.
7. Agradeço-vos a todos, não somente a participação neste Congresso, mas também o testemunho quotidiano e a acção educativa na comunidade cristã. Convosco, faço memória do testemunho daqueles que, na nossa época, viveram a sua fidelidade à mensagem de Cristo sobre a dignidade do homem, ao renunciarem aos seus próprios direitos, por amor dos irmãos e irmãs. Confio as vossas diversas missões a Maria, Mãe da Igreja, que vos ajudará a penetrar, como Ela, no sentido mais profundo do grande mistério da Redenção do homem.
A vós, às vossas famílias e a todos os que compartilham os vossos empenhos, dou de todo o coração a Bênção Apostólica.
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