VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL
(30 DE JUNHO - 12 DE JULHO DE 1980)
HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II
DURANTE A SANTA MISSA EM SALVADOR
Salvador da Bahia, 7 de Julho de 1980
Senhor Arcebispo Cardeal Avelar Brandão Vilela,
Senhor Arcebispo Coadjutor Dom João de Souza Lima,
Senhor Bispo Auxiliar Dom Tomás Murphy,
Meus irmãos no Episcopado e no Sacerdócio ministerial,
Amados irmãos e irmãs, religiosos e leigos
1. Há quase 480 anos, cercado pelo grupo dos descobridores e talvez por índios aturdidos e curiosos, Frei Henrique de Coimbra celebrava a Santa Missa sobre as areias da praia logo batizada como Porto Seguro. Hoje, quisestes que o Sacrifício Eucarístico celebrado pelo Papa aqui em Salvador fosse uma rememoração daquela primeira Missa no Brasil. Isto confere ao presente rito um caráter singular e uma dimensão nova. São as raízes históricas do Brasil que nesta celebração se deixam ver.
Neste contexto, as leituras que ouvimos proclamar, trazem uma mensagem e pedem a nossa meditação.
O texto de São Mateus retrata um instante decisivo da Igreja. É o momento em que o Ressuscitado, ao termo de sua vida terrena, deve voltar ao Pai. Ficam os Apóstolos e fica a Igreja, nascida do poder dado ao Verbo encarnado e por Ele transmitido aos Apóstolos. Qual a missão dela e deles? “De todos os povos fazei discípulos” – ordena o Senhor Jesus – ensinai a viver segundo o Evangelho. Batizai em nome do Deus Uno e Trino. Sabei que eu me vou, mas permaneço convosco até o fim (cf. Mt 28, 18-20).
O Apóstolo Paulo reflete sobre esta missão, tendo diante dos olhos a vida concreta de uma Igreja entre outras. Ele as vê una e múltipla. Múltipla na diversidade dos carismas, dos ministérios e atividades – una no único Espírito que suscita a diversidade. Múltipla na variedade de raças, de condições sociais, de proveniência dos que são chamados a compô-la – una porque um só o Batismo que a todos introduz na Igreja. Múltipla como múltiplos são os membros – una à imagem da unidade do corpo.
A Igreja vem meditando estes textos e estas mensagens desde os seus albores, mas tem consciência de que ainda não os aprofundou como desejaria (e será que os aprofundará algum dia?). Em diferentes situações concretas ela relê esses textos e perscruta esta mensagem no desejo de descobrir neles uma aplicação nova. Tomamos contacto com eles mais uma vez nesta expressiva celebração eucarística.
Quisestes que a missa do Papa em sua passagem por esta Cidade seja uma rememoração de outra Missa: aquela que foi a primeira celebrada na terra apenas descoberta. Que vos dizer, então?
2. A primeira observação a fazer é que, enquanto a maioria dos povos vieram a conhecer a Cristo e ao Evangelho depois de séculos de sua história, as nações do continente latino-americano e, entre elas de modo especial o Brasil, nasceram cristãs. As caravelas que no dia 3 de abril 1500 aportavam à baía de Porto Seguro, traziam, também, os primeiros missionários e evangelizadores, os filhos de São Francisco. Desembarcados Pedro Álvares Cabral e os primeiros colonizadores, foi erguida uma Cruz e rezada a Primeira Missa, a que já estiveram presentes, admirados, alguns indígenas. Deu-se às novas terras o nome de Terra de Santa Cruz. Esses fatos, na aurora do Brasil, haveriam de marcar, profundamente, a história já agora cinco vezes secular da nova nação que nascia para o Ocidente.
Idêntico fenômeno verificou-se por toda a América Latina, como se lê nas conclusões de Puebla:
“A América Latina constitui o espaço histórico em que se dá o encontro de três universos culturais: o indígena, o branco e o africano, que foram enriquecidos, posteriormente, por diversas correntes migratórias. Aí se dá, ao mesmo tempo, uma convergência de maneiras diferentes de ver o mundo, o homem e Deus, e de reagir frente a eles. Forjou-se uma espécie de mestiçagem latino-americana...” (Puebla, 307).
O certo é que apóstolos, como o Padre José de Anchieta, que tive a alegria de incluir no catálogo dos Beatos da Igreja, no passado dia 22 de junho, colocaram-se decididamente ao lado das populações indígenas, aprendendo-lhes a língua, assemelhando-lhes os gostos, adaptando-se à sua mentalidade, defendendo-lhes, a vida e, simultaneamente, anunciando-lhes a verdade salvífica de Jesus Cristo, convertendo-os para o Evangelho, batizando-os e integrando-os na Igreja.
3. Surge, assim, o catolicismo brasileiro, resultado, como o próprio Brasil, de um dos caldeamentos mais importantes da história humana. Aqui se mesclaram, durante três séculos, o índio, o europeu e o africano e, a partir do século passado, a eles vieram somar-se o sangue e as culturas dos árabes, como os cristãos maronitas, dos migrantes japoneses asiáticos, hoje constituindo uma grande comunidade, predominantemente católica. Neste sentido o Brasil oferece um testemunho altamente positivo. Aqui vai sendo construída com inspiração cristã uma comunidade humana multi-racial. Um verdadeiro tapete de raças, como afirmam os sociólogos, amalgamadas todas pelo vínculo da mesma língua e da mesma Fé.
Definem-se desse modo, a largos passos, as características deste povo jovem, dinâmico, laborioso, grande esperança da Igreja. Um povo de profunda religiosidade, como provam não só o nome de tantos Estados – São Paulo, Espírito Santo, Santa Catarina – e de tantas capitais – Belém, São Luiz, Salvador – ou a sua notável devoção à Mãe de Deus, invocada sob vários títulos, mas, especialmente, sob o título de Nossa Senhora Aparecida; as concorridas festas populares do Círio de Nazaré, do Senhor do Bonfim, do Divino; as participadíssimas procissões do Encontro, do Senhor Morto, do Senhor Ressuscitado, dos Santos Padroeiros; mas também a adesão dos fiéis aos seus Bispos e sacerdotes, ao Papa, Vigário de Cristo e Sucessor de Pedro.
Essas são outras tantas provas da grande religiosidade dos brasileiros, católicos na maioria absoluta dos seus filhos e filhas.
Entretanto, é preciso olhar mais para a frente que para trás. É preciso tirar do passado as lições para o futuro. É preciso promover o verdadeiro progresso, processo de desenvolvimento integral, salvando a todo custo os sagrados valores da Fé, da Moral e da Família. Esse é, queridos filhos e filhas, o grande desafio que deveis enfrentar. Essa é a vossa tarefa, irmãos no Episcopado, sacerdotes, religiosas e leigos católicos. Esforçai-vos por não desmerecer as esperanças que o Papa deposita em vós. Sede dignos dos missionários que vos evangelizaram, dignos dos cristãos que vos precederam na Fé.
4. Sei que se discutem também entre vós, como na África há pouco visitada por mim, os rumos exatos do processo de aculturação. Sim, é sagrada e digna de respeito em seus elementos essenciais, a cultura de cada povo. Mas é importante, também, lembrar os direitos de Deus, da Igreja e do Evangelho. Como, igualmente, o fundamental direito de todo homem aos benefícios da redenção operada por Cristo Jesus. “Todo homem deve poder encontrar-se com Cristo”, lembrava eu na Encíclica “Redemptor Hominis” (n. 13). Todo homem, aliás, necessita de Cristo, também Ele homem perfeito e salvador do homem. Cristo é a luz que, integrada nas mais diversas culturas, as ilumina e eleva por dentro. A verdadeira Fé não está em contradição nem mesmo com os valores religiosos da religião de cada povo, pois revela-lhes a verdadeira face de Deus, que é Pai. A Fé cristã respeita as expressões culturais de qualquer povo, desde que sejam verdadeiros e autênticos valores. Mas deixar de transmitir a todos os homens o íntegro depósito da Fé, seria uma infidelidade à própria missão da Igreja. Seria não reconhecer aos homens um fundamental direito seu: o direito à verdade.
É claro que o anúncio da Fé supõe uma adaptação à mentalidade dos que são evangelizados. De nenhum modo, porém, implica essa adaptação uma incompleta expressão e anúncio do Evangelho.
Somos guardiães da Palavra de Deus e, portanto, não temos direito de mutilá-la em nossas pregações a quem quer que seja. Nem se diga que a evangelização deverá, necessariamente, seguir ao processo de humanização. O verdadeiro apóstolo do Evangelho é o que vai humanizando e evangelizando ao mesmo tempo, na certeza de que, quem evangeliza, também civiliza.
Assim deverá continuar sendo. Estejam sempre lembrados os missionários e evangelizadores deste querido Brasil, que o seu compromisso principal é com o Evangelho, sendo competência e dever primário do Estado oferecer a todo brasileiro as condições exigidas por uma vida digna, resultado da conveniente satisfação de todas as necessidades primárias da existência. À Igreja compete apenas subsidiariamente a solução dos problemas de ordem temporal.
A Igreja deseja entrar em contato com todos os povos e todas as culturas. Ela mesma deseja enriquecer-se com os valores verdadeiros das mais diversas culturas. A liturgia é um dos campos - não certamente o único - para esse intercâmbio entre a Igreja e as culturas. Nesse sentido, a experiência mostra, de modo convincente, que é possível salvaguardar religiosamente aquelas verdades e expressões culturais que a legítima autoridade eclesiástica propõe como de instituição divina, e respeitar com amorosa e atenta fidelidade os textos e ritos que a mesma legítima autoridade deliberadamente exclui da criatividade dos indivíduos e grupos - comentadores, animadores litúrgicos, presidentes de assembléias eucarísticas, celebrantes principais dos sacramentos - e ao mesmo tempo dar à celebração um cunho de encarnação no ambiente em que ela se celebra. A sabedoria com que os presidentes e celebrantes cumprem o seu papel é de extrema importância.
Desse intercâmbio permanente e fecundo hão de beneficiar-se tanto a cultura indígena, quanto a negra e a européia, como também - por que não dizê-lo -, a própria Igreja em vosso País.
5. E aqui cabe uma referência, ainda que breve, a um tema de relevo. Vários documentos da Igreja Universal, da Igreja na América Latina e das vossas Igrejas Particulares, têm tratado do problema da religiosidade popular. Lembro a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (n. 48), de meu predecessor Paulo VI, os Documentos de Medellín, as Conclusões de Puebla (cf. Puebla, 444-469) e a minha Encíclica “Redemptor Hominis” (nn.13 e 14). Verifico com alegria, que mesmo no Brasil realizam-se pesquisas, escrevem-se ensaios e faz-se um esforço sempre maior, no sentido de respeito à religiosidade popular que, aliás, é também ela, expressão de uma dimensão profunda do homem. É a própria alma do povo que aflora nas expressões e manifestações da religiosidade popular, algumas de grande singeleza. No mais profundo da religiosidade popular, encontra-se sempre uma verdadeira fome do sagrado e do divino.
É preciso, pois, não desprezá-la, não ridicularizá-la. É preciso cultivá-la e servir-se da religiosidade popular para a melhor evangelização do povo. As manifestações religiosas populares, purificadas dos seus desvalores, de toda superstição e magia, é, sem dúvida um meio providencial para a perseverança das massas em sua adesão à Fé dos seus antepassados e à Igreja de Cristo.
“Como toda a Igreja, a religião do povo deve ser evangelizada sempre de novo. Na América Latina, depois de quase 500 anos de pregação do Evangelho e do batismo generalizado de seus habitantes, esta evangelização há de apelar para a "memória cristã de nossos povos". Será um esforço de pedagogia pastoral, em que o catolicismo popular seja assumido, purificado, completado e dinamizado pelo Evangelho. Isso implica, na prática, retomar o diálogo pedagógico, a partir dos últimos elos que os evangelizadores de outrora deixaram no coração de nosso povo. Para tanto requer-se conhecer os símbolos, a linguagem silenciosa, não verbal, do povo, com o fim de conseguir, num diálogo vital, comunicar a Boa Nova mediante um processo de reinformação catequética” (Puebla, 457).
6. Visitando o Estado da Bahia e a vossa bela cidade de Salvador, berço da nação brasileira e ponto de partida da evangelização do vosso grande País, saúdo, de todo coração, aos vários grupos étnicos que aqui se encontraram e fundiram: os indígenas, os homens de cor, os europeus de Portugal e de outras nações, os orientais e os asiáticos. Perseverai com grande constância na estrada percorrida até hoje. Sede fiéis à vossa missão histórica na América Latina e no Mundo.
Estais demonstrando com êxito como a lei fundamental do cristianismo, a fraternidade, pode levar à convivência harmoniosa e construtiva do futuro os mais diferentes povos. Estais demonstrando como a força de vontade aliada à Fé cristã, pode construir uma democracia marcada de humanismo e de fraternidade.
De vossas raízes históricas se pode dizer portanto, que elas nos transmitem duas lições: a de uma cultura impregnada, desde o primeiro momento de sua existência, pelos valores da Fé e da capacidade que tem esta Fé para integrar raças e etnias as mais diversas. Não sem razão dizem os estudiosos do Brasil que, juntamente com a língua, é a fé católica da maioria do vosso povo um eminente fator dessa integração que desafia o obstáculo das enormes distancias, das difíceis comunicações, das diversidades climáticas.
Queira Deus que a diversidade na unidade evocada pelos textos desta Missa se realize com a possível perfeição em todos os níveis de vossa comunidade nacional. Para tanto o Senhor vos cubra com suas bênçãos.
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